domingo, 31 de maio de 2009

Me dê uma ilusão, por favor

Apesar de gostar de filmes de todos os gêneros e escolas de cinema, devo meu amor ao cinema a Hollywood. Aos filmes que assistia na sessão da tarde, sessão de gala e sessão coruja, da era pré-locadora e pré-pré-pré-tv a cabo. Mas hoje, sabendo que filmes também são um grande comercial dos padrões estéticos e de comportamento de uma sociedade, assisto-os com muitas ressalvas. Por isso, se na minha puberdade cinéfila alguns artifícios do cinema americano me seduziam, hoje chegam a me irritar. Por exemplo, demonstrações de nacionalismo exacerbado. Se antes me faziam chorar por comoção, hoje é de desgosto mesmo. Quem não se irritou com a cena de Independence Day onde o presidente americano se juntava a uma esquadrilha para combater a nave alienígena? Ou com Matt Damon chorando perante seus familiares no cemitério dos heróis de guerra, com a bandeira americana tremulando ao fundo, no final de "O resgaste de soldado Ryan"? Ou ainda, no filme "A vida é bela", quando um tanque americano liberta os judeus de Auschwitz, o que historicamente foi feito pelos russos? - cena do filme italiano "A vida é bela", que acabou recebendo o Oscar de melhor filme estrangeiro. É verdade que nenhum filme está isento de influenciar cultura, política e economicamente os seus expectadores. Mas os americanos usam e abusam dessa técnica. Ainda mais hoje que a dominação cultural teve seus lucros multiplicados pela globalização. Americano hoje já faz filme pensando não só na bilheteria, mas também e principalmente, nas caixas registradoras. Em enredos e personagens que se desdobrem na concessão de licenciamentos para comércio de quinquilharias. As vezes acontece o processo inverso, cria-se o personagem vendável para depois se chegar à história do filme. Mas pior do que vender miniaturas do Shrek é o cinema contribuir para disseminar o bom-mocismo, a hipocrisia, o falso puritanismo do americano. Americano é tão bom de propaganda ideológica que me faz desconfiar mesmo quando o produto deles é bom. Por exemplo, Barack Obama. O produto, no caso o homem Obama, era tão bom que os marketeiros nem tiveram que tirar cartas da manga para a campanha decolar. Mesmo assim, toda a pirotecnia de comícios e demonstrações de apoio de gente famosa, além daquela corrente pra frente global pela eleição do novo dono do mundo me fez voltar ao passado e ficar com um dedinho do pé atrás. Guardadas as proporções, pensei que os americanos pudessem estar comprando Lula por Obama.

sábado, 30 de maio de 2009

Que raiva que dá

Sabe quando as mães bronqueiam com seus filhos e mandam eles engolirem o choro? Talvez seja o pior ensinamento - aprendido a fórceps, claro -  que uma mãe pode dar a um filho. Porque eles, que ainda são crianças, podem levar isso a sério pelo resto da vida. E quando digo engolir o choro, refiro-me também a reprimir a raiva. A raiva é um sentimento corrosivo. Se você bota para fora, pode acabar fazendo o que não deve ou atingindo quem não merece. Se você a guarda, pode acabar virando uma doença. E não adianta negá-la. A raiva não leva desaforo para casa. Aliás, ela não vai pra casa. Fica aí dentro de você e não raro acaba virando frustração, culpa e outros tipos de sofrimento. Por isso, quando for acometido da dita cuja, tome uma atitude sensata. Chute a perna da mesa, com força, com gosto. Ou então, respire, conte até sete e dê alguns murros num travesseiro. Assuma que você é um portador desse sentimento muito humano que é a raiva. E livre-se dela o mais rápido possível.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Tem nome na lista?

De dia, a maior autoridade do país é o presidente da república. De noite, é a hostess. Hostess tem de tudo que é tipo. Desde a prima mais gata do dono da casa - ou alguém que ele queria pegar quando contratou e resolveu unir o útil ao agradável - até a ex-modelo que foi capa da Capricho nos anos 90. Da simpática a arrogante. Da varapau até a gordelícia. O que todas elas têm em comum é o poder de colocar uns para dentro e deixar outros para fora. Seria uma espécie de guardiã que seleciona quem vai entrar no paraíso e quem vai continuar no inferno do trânsito e do relento noturno. Não que uma pista de dança, por mais fumaça que a envolva, chegue sequer perto do nirvana. Mas a hostess faz parecer que sim. Do alto de seus 12 cm de salto ela usa sua autoridade de testa de ferro para botar para dentro só quem tem a cara da casa. Ou é amigo do dono, ou do DJ, ou tem o nome na lista. Para quem insistir em bater boca com ela, uma legião de seguranças está a postos para fazer você se sentir ainda mais insignificante. Por isso antes de sair para uma festa fechada convém saber se ela vai estar lá na porta. E dar um jeito de colocar seu nome na lista ou usar o nome de alguém que não vai - se ele for judeu e você japonês, treine bem seu poder de convencimento. Depois de frequentar por anos festas e baladas em que você se desdobrou para se juntar aos "eleitos", você vai percebendo algumas coisas que põe em dúvida colocar o carro na rua. Seu faro para roubadas fica cada vez mais aguçado. Você começa a sacar que os convidados nem eram tão especiais assim e que muitas vezes são de outra tribo, conflitante com a sua. As filas do caixa se tornam demoradas e sem sentido. Ou seja, você ficou velho para esse tipo de coisa. Sem querer, você foi reduzindo o vício até parar. Começa a preferir mesas de bar ou reuniões em casa com os amigos. Uma baladinha, só de vez em quando. Mas quando vai ainda aproveita para dar uma cantada na hostess, que agora não parece mais aquela garota poderosa de antes.

Remédios para a violência

- Contra batedores de carteira?
- Carteira dentro da calça.
- Contra sequestro relâmpago?
- Limite noturno de saque.
- Contra assalto em empresa?
- RG e olha para aquela câmera, por favor.
- Contra traficante?
- Abstinência.
- Contra tropa de choque?
- Correr.
- Contra assalto no sinal?
- Carro blindado.
- Contra a violência doméstica?
- Denúncia.
- Contra estupro?
- Choque elétrico.
- Contra assalto a banco?
- Guarita blindada.
- Contra violência nos estádios?
- Pay-per-view.
- Contra hooligans?
- Emprego.
- Contra chacinas?
- Se jogar no chão.
- Contra arrastão?
- Dinheiro na sunga.
- Contra a sensação de insegurança?
- Efeito placebo.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Stress

Ao dobrar a esquina, Joana não viu que Adelaide vinha distraída na direção contrária. Bateram forte, mas ninguém se feriu gravemente. Foi mais o susto. Então, recompostas da taquicardia, as duas iniciaram um bate-boca que por pouco não acaba em pancadaria:
- Aí, sua vaca, não olha pra frente, não?
- Você que é braço, sua piranha.
- Braço? Olha aqui o meu todo arranhado por sua causa.
- Queria é ter arrancado ele inteiro.
- Ah, é? Vadia, filha de uma p...
- Cala essa boca senão amasso esse nariz de tucano.
- Melhor que essa papada de boi nelore.
- Papada? Vai fazer uma plástica nesse pescoço de tartaruga.
- Bruxa pelancuda!

Nisso chega um homem, que tenta apartar a briga:
- Que é que tá acontecendo aqui, meu Deus?
- Essa rameira que bateu com o carrinho dela no meu.
- Eu que bati? Vai fazer exame de vista, cegueta.
- Peraí, gente, ninguém se machucou, né?
- Não, mas essa qualquer quebrou minha caixa de ovos.
- Ah, é? E esse pacote de biscoito polvilho? Esfarelou tudo.
- Mas senhora, é só ir até a prateleira e trocar as compras que estragaram por outras. As senhoras ainda não passaram no caixa.
- Não, quero que esse cão chupando manga pague meus prejuízos.
- Viu como esse tribufu é sem noção?
- Ah, vá rodar bolsa na esquina, vai...

Aí chega o repositor de estoque do supermercado, que pergunta gentilmente:
- Posso ajudar?
- Não, sai daqui, ô maconheiro.
- Não se intromete, seu puto.

Aqui se paga

Na primeira vez que estacionou o carro naquela vaga, abriu a porta, sentiu um formigamento nas pernas e tocou os pés no chão com dificuldade, como se temesse cãibras. Da segunda vez foi ainda mais difícil, tendo que girar o tronco noventa graus e pousar os pés juntos do lado de fora. O esforço foi ainda maior na terceira vez, quando suspendeu as pernas segurando-as por baixo dos joelhos. E assim gradativamente era cada vez mais penoso sair do carro depois de estacioná-lo ao lado do guichê no piso G1 daquele shopping. Até o dia em que teve que adaptar seu carro, retirando o banco da frente e abrindo espaço para receber uma cadeira de rodas. Foi o preço que pagou por estacionar tantas vezes na mesma vaga para deficientes.

Adolescência perdida

Você já imaginou que na época em que a expectativa de vida do homem girava em torno de 30, 35 anos, não havia adolescência? Que guris de 15 anos já eram perturbados no Natal por aquela pergunta de tia, "quando é que você vai casar?". É no mínimo curioso imaginar o que deveria ser amadurecer tão rápido, sem passar pela montanha russa hormonal da adolescência. Os jovens provavelmente nem podiam namorar tranquilos na frente do portão - seus pais logo apareciam na janela, mandando-os para o quarto fazer logo um filho. As espinhas, coitadas, nem tinham tempo para nascer e já davam lugar às rugas de preocupação dos adultos. Aquele viço de garota na flor da idade era logo encoberto pela seriedade da matrona. Dar um piti na frente de todo mundo deveria ser atitude impensável para um distinto senhor de 14 anos. Suprimir a adolescência só parece bizarro para quem, como nós, temos a referência dessa fase turbulenta. Mas não deixa de ser engraçado imaginar se isso de fato acontecesse nos dias de hoje. De cara vejo todos os integrantes de boy bands desempregados por falta de público, tentando cavar uma vaguinha no Big Brother para pagar as contas. Filmes como Velozes e Furiosos, High School Musical e outros block buster do gênero nem seriam produzidos. A Hello Kitty pediria concordata no dia seguinte. As ações do Orkut despencariam. Seria um rombo descomunal no mercado, que teria que compensar as perdas aquecendo o mercado de fraldas, tanto as infantis quanto as geriátricas. Em compensação seria um sossego para quem é obrigado a aturar os arroubos emocionais desses jovens descabeçados. Todas as preocupações com alcoolismo, drogas, direção perigosa e outros efeitos colaterais da adolescência desapareceriam. Sem contar a malcriação e aquele som de heavy metal intermitente no último volume. Por outro lado, o que seria das famílias sem aquele dublê de punk pseudo-mudo batendo a porta com força? E as escolas, então? Não morreriam de tédio sem poder expulsar algum aluno de vez em quando? Ruas sem pichações, praias sem surfistas, carros sem namoro com direito a mão aqui e ali, refeições sem Big Mac. A falta da adolescência deixaria um baita rombo na vida. Então, melhor que os adolescentes continuem fazendo zueira por aí, azucrinando a vida de quem já passou por isso. Afinal, no fundo no fundo a adolescência é uma fase linda. Um período onde você está autorizado a se fazer de palhaço. Não é a toa que nasce aquele espinha avermelhada bem na ponta do seu nariz.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

A finalidade da abdução

Deus fez o mundo em sete dias e dedicou só um deles para criar o ser humano. Depois, arrependido, percebeu que deveria ter gasto um tempinho a mais no produto e submetido um protótipo a rigorosos testes de qualidade, um ISO 9000 só para começar. Mas era tarde, o homem já estava no mercado e só restou a Deus acompanhar seu desempenho. O primeiro lote com duas unidades - versões Adão e Eva - foi prontamente recusado e devolvido pela praça onde foi lançado, o Paraíso. Empreendedor como era, Deus não ia desistir assim de primeira. Logo estava mandando um segundo, um terceiro, milhares de lotes de seres humanos para todos os pontos de venda disponíveis, dos cinco continentes. Enfim ele conseguiu inundar o mercado com produtos de todos os modelos, cores e tamanhos possíveis. Mas a fabricação em massa teve suas consequências. Por exemplo, a perda de qualidade e a desvalorização do homem devido a oferta excessiva. Sem contar a canibalização de outros produtos de fabricação divina, como animais, vegetais e minerais, que não conseguindo disputar o espaço com o homem, foram sumindo do mercado. Não demorou para que Deus jogasse a toalha e estendesse uma faixa lá no céu onde se lia "Passa-se o ponto". Recebeu ofertas tentadoras de compradores que se apresentaram como Luís Cifer e Isabel Zebu, mas que foram recusadas porque Deus desconfiou que se tratava da mesma pessoa. Mas cansado de esperar por outras ofertas que nunca chegavam - afinal, não era qualquer um que tinha cacife para arrematar toda a humanidade - Deus resolveu vender tudo bem baratinho, para o primeiro comprador que aparecesse. Não demorou para que um disco voador que zanzava por ali avistasse a faixa e seus tripulantes se interessassem pelo negócio. E assim a humanidade foi comprada por uma holding de planetas de outra galáxia e passou a ser monitorada de longe. De vez em quando eles passam por aqui e pegam uma amostra aleatória do ser humano, só para checar a produção. É a famosa abdução, que nada mais é do que um controle de qualidade. Só não dá para entender porque é que eles, em vez de retirar do mercado, devolvem a prateleira um produto com tantos defeitos.

Na firma, como os firmeiros

Desde que firma é firma, existe um código de comportamento que dever ser seguido se neguinho quer sobreviver lá dentro. Em geral esse código é um mix de cultura corporativa - que o executivo já possui por carga genética ou traz lá dos tempos de estagiário, aprendido na porrada - com a cultura da própria empresa em questão. Estamos falando do bom-mocismo carreirista redenominado marketeiramente como inteligência emocional. Que em outras palavras é a sua capacidade potencializada de engolir sapos. Não que engolir sapos não seja prática que remete ao período firmazóico do capitalismo. Mas ultimamente tantos são ingeridos diariamente que entre executivos já são a maior causa de azia corporativa, muito mais do que aquele cafezinho engolido de estômago vazio. Fazer o quê, lei da sobrevivência. Antigamente, com menos concorrência entre empresas e entre funcionários, todo mundo tinha seu espaço delimitado. As pessoas se conheciam e eram reconhecidas por um cargo ocupado dentro de uma empresa, muitas vezes por 20, 30 anos, não raro até a aposentadoria. Hoje, dentro da guerra corporativa, o índice de descartabilidade cresce exponencialmente na mesma medida em que pessoas se tornam números em budgets de contratação. O jeito é engolir em seco naquele momento em que seu saco vai pra lua e você fica na beira do precipício corporativo, sem saber se dá um passo para o suicídio ou senta e conta até cem. Pena que isso acabe favorecendo o funcionário bundão, que movimenta a cabeça para cima e para baixo todo o tempo, quando deveria fazê-lo para os lados também. O CEO está nu e não sabe.

domingo, 24 de maio de 2009

Projetos

Alguém já definiu a vida como tudo que acontece enquanto estamos fazendo planos. Sou a favor do aqui e agora e já li dezenas de livros - até de auto-ajuda, confesso - sobre a importância de valorizar o momento presente. Ok, concordo, mas nem sempre sigo. É que sou um dependente crônico de projetos. Não consigo organizar minha cabeça sem eles. Em certos momentos, tudo começa a girar em torno de um projeto iminente, e aí a rotina fica uma bagunça. As vezes chego a ficar recluso, me alimentar mal, dormir idem, tudo em função de finalizar um projeto. E se não me dão um prazo, se eu mesmo é que defino a data do fim, aí é que meu perfeccionismo me ferra mesmo. Adio o fim indefinidamente até eu me dar conta do masoquismo, do auto-flagelo que estou cometendo. Claro que não é uma maneira sábia de viver. Estar sempre focado em projetos é, em última instância, viver para o futuro. E nesses tempos atuais é insano tentar antecipar o próximo ano, o próximo mês, mesmo a próxima semana. Quanta gente se equivocou fazendo apostas futuras como na bolha da internet ou recentemente na bolha imobiliária que gerou essa crise, só para ficar na área financeira. Olhando para minha estante, para troféus que são resultados de antigos projetos, fico imaginando se tanto esforço e preocupação teriam valido a pena. Pelo resultado em si, não. Um dia de aplausos não compensa uma sucessão de noites mal dormidas. Mas o processo, o envolvimento que resultou nas conquistas, essa é a parte que conta e fica em você. Eu não seria o mesmo se não me colocasse diante de desafios e tentasse superá-los. Agora, quando estou me lançando em novos projetos, talvez a sabedoria adquirida ajude a encontrar meu equilíbrio, que mescle o desejo de atingir resultados com o relaxamento de curtir a trajetória. Sei que tudo mudou e, mesmo conservando o entusiasmo juvenil, quero me livrar da onipotência igualmente juvenil de adiar o viver em função de um projeto. Se por um período da minha vida os fins justificaram os meios, de agora em diante faço questão de que os meios justifiquem os fins.

Coisas que eu poderia estar fazendo agora

Um psicólogo já disse que uma das sensações decorrentes da vida moderna é a de se sentir sempre fora da festa. É como se o homem moderno fosse acometido de um faniquito só de imaginar que há alguém fazendo coisa melhor que ele, naquele instante. A má notícia é que sempre há. Muita gente deve estar agora em uma ilha paradisíaca, em seu passeio de iate na companhia de pessoas bonitas e charmosas, exibindo aquele ar blasé de falso tédio no rosto. Se você não é playboy, fazer o quê. A boa notícia é que não necessariamente você gostaria de estar no lugar dessas pessoas. Se estiver na maior ressaca, provavelmente optaria por ficar aí enterrado no seu puf enquanto zapeia, só por distração, uma interminável sucessão de canais chatos. Mas, insistindo na sensação de exclusão, uns ainda desejariam se recuperar dessa ressaca na suíte daquele mesmo iate, recebendo cafuné de uma linda gata - e além da ressaca, iam sofrer com enjôo do mar também. Não é má idéia. Enfim, tudo isso foi para exemplificar como é difícil lidar com a eterna insatisfação humana. Essa confusão dos diabos sofrida por quem ainda não aprendeu a separar o desejo da necessidade. Refiro-me a todos nós, em vários momentos da vida. Eu, por exemplo, nessa tarde-noite de domingo, não achei nada melhor para fazer do que enfileirar essas palavrinhas neste post pouco inspirado. Não posso deixar de imaginar que haja gente fazendo coisa muito melhor do que eu, e claro que há. No mínimo eu já estaria melhor se uma gata estivesse aqui me fazendo um cafuné. Mas é o que me restou para matar as horas derradeiras deste domingo meia-boca. Sim, confesso que sou uma vítima dessa pandemia moderna, a síndrome dos fora-da-festa. Um mal que só não chamou a atenção das autoridades porque não é fatal, embora perturbe a cabecinha de muito candidato a depressivo por aí. Então sugiro que o Ministério da Saúde ache soluções viáveis para casos graves. Por exemplo, distribuindo ingressos para camarotes de quaisquer eventos. Ou tele-transportando entediados crônicos para raves em navios abarrotadas de modelos. Ou ainda, promovendo surubas coletivas e democráticas em praças públicas. É compreensível que as autoridades estejam empenhadas em causas mais sérias, tais como a prevenção da gripe suína. Mas fica registrada a nossa sugestão para se controlar a síndrome dos fora-da-festa. Apenas controlar, não erradicar. Isso por enquanto seria impossível, visto que o vírus da insatisfação humana jamais foi encontrado.

O potencial de uma folha em branco

Sulfite era uma folha de papel em branco. Veio ao mundo assim, branquinha, vazia, sem graça. Igualzinha a duzentas outras folhas que faziam parte daquele pacote Chamex , estocado na prateleira de uma Kalunga da vida. Desde que fora parida de um viçoso eucalipto, Sulfite ansiava por um futuro brilhante. Era uma verdadeira sonhadora e suas colegas procuravam desencorajá-la, sabendo que o destino não reservava grande coisa para uma folha de papel. Grande parte acabaria na impressora de um escritório modorrento, esperando a hora de virar um relatório, uma petição ou um layout. Outro montante dedicaria sua vida ao ensino, como folhas para anotações em sala de aula, quando não se tornavam aviõezinhos, bolinhas de papel e recadinhos amorosos. Poucas folhas terão a sorte de uma vida longa e amarelada na prateleira de uma estante, como página de livro. Menos ainda se eternizarão em manuscritos de grandes obras da literatura. Algumas ficarão agradecidas ao serem enquadradas na parede, com títulos de doutor, bacharel, comendador e outras honrarias que os homens tanto valorizam. Mas a maioria vai ter que se contentar em virar folhinhas de recado, para depois serem amassadas e jogadas no lixo. E ai de quem não exercesse bem sua função. Na outra encarnação poderia voltar como caderno de classificados, folheto imobiliário, papel de pão ou papel daquele tipo, argh, você já sabe. Mesmo sabendo de tudo isso, Sulfite conservava a esperança de um destino acima de todas as expectativas. E de certa forma, era uma postura coerente diante de sua potencialidade de folha em branco, de sua condição de tábula rasa. Foi assim que contrariando todos os prognósticos, Sulfite teve seu momento de glória. Colada nas costas de um executivo, com a mensagem "Chute-me" grafada em seu corpo, Sulfite provocou gargalhadas de uma grande platéia - e uma demissão - em sua nova e já bem sucedida carreira de humorista.

sábado, 23 de maio de 2009

Idéia

Me dê uma idéia nova hoje. Por favor, eu lhe imploro. Uma idéia que me encante. Que faça meu coração disparar. Que deixe meus olhos sorrindo. Que me rejuvenesça 20 anos. Uma idéia que assassine o tédio. Que derrube preconceitos. Que desestabilize a ordem. Que inverta os sentidos e inverta de novo. Uma idéia de ingênua sofisticação. Uma pepita de ouro. Idéias assim são raras. Mas estão por aí vagando, esperando por quem as cace. Por isso, um conselho, ande sempre com uma rede nas mãos. Para que elas não lhe escapem. Embora, se uma escapar, sempre vai ter outra. Só é preciso ter paciência. E querer mais que os outros. Idéia gosta de quem gosta dela. Mas tem que gostar mesmo, a concorrência é grande. Tem que merecer. Tem que rezar. Tem que pedir, pedir, pedir. Se não fizer o esforço, depois não reclama que a idéia não caiu no teu colo. Pensa que idéia é assim, que vai caindo no colo de qualquer um?

Vinte e três

São vinte e três possibilidades - um pouco mais se você incluir o espaço em branco, travessão, hífen e pontuações. Você entra com o estilo, a imaginação, o sentido - ou nenhum sentido - e do emaranhado de letras sai um texto. Que pode ser uma obra acabada, o rascunho de uma obra ou, na maior parte das vezes, só um rascunho mesmo. O que importa é que está lá, registrado numa folha de papel, numa página de livro ou da internet. Se vai ganhar o mundo, se vai ganhar o Pulitzer, ah, isso não é tão importante. O que importa é que você sentou, encarou e de lá saiu alguma coisa, uma pensamento, um sentimento, uma confusão, qualquer coisa. Você veio, deu o recado com a máxima sinceridade e depois saiu. Não é todo dia que você vai estar inspirado. Ainda bem. Se assim fosse, só teríamos livros geniais de caras geniais para ler. E você precisa de pessoas normais produzindo para encorajá-lo. A mexer em suas feridas, a buscar o inusitado, a brincar com a imaginação, a se conhecer pelo espelho do lap-top. Escrever nos possibilita entrar na pele de vários personagens. Um deles é a própria pessoa que escreveu. Que dentro do texto corrido costuma ser mais sincera do que ao vivo e a cores. Mesmo que não pareça, sempre é. Se não pareceu, é porque você não leu as entrelinhas.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Duas cabeças, uma sentença

Herbert e Hubert eram irmãos que não se desgrudavam. Literalmente. Eram siameses e dividiam um único corpo, sobrecarregado pelo peso de duas cabeças. Logo cedo se revelaram personalidades bem diferentes, Herbert mais introvertido, intelectual e reflexivo, Hubert atlético, pragmático e solar. Apesar das diferenças tiveram uma infância harmoniosa, que pouco ficava devendo à de quaisquer irmãos gêmeos. Só vieram a bater cabeça - apenas no sentido figurado - mais tarde, na adolescência. Herbert começou a se destacar em oficinas literárias, ganhou alguns prêmios de literatura e passou a ser incentivado a seguir carreira. Por outro lado, Hubert já era visto como "jogador diferenciado" no juvenil do Boituva Atlético Clube e, segundo os boateiros de plantão, estava na mira de olheiros dos clubes da capital. O problema começou quando ambos resolveram priorizar suas respectivas carreiras. Herbert queria passar tardes inteiras na biblioteca , na frente da tela do Word, enquanto Hubert puxava o irmão para os treinos e concentrações do Boituvinha. Todo mundo sabe que uma pessoa dividida não chega a lugar nenhum e essa era a angústia de Herbert e Hubert. Enquanto cada um insistisse em puxar o corpo para seu lado, o máximo que conseguiriam ser era meio escritor e meio jogador de futebol. O conflito se instalou e durante meses os gêmeos se embrenharam na pior das brigas - daqueles que não se consegue separar as partes envolvidas. Só não se machucaram porque isso seria mutilar a si mesmos. Mas passavam o dia com a cara virada para o outro e a noite sofriam de torcicolo. Até que um dia, para tentar selar as pazes, seus pais lhe deram de presente um lindo violão. Foi paixão a primeira arranhada. Herbert, o intelectual, fazia os acordes e solos com a mão esquerda. Hubert, o atleta, era o responsável por vigorosas batidas e palhetadas. Herbert se destacava pelas composições inteligentes. Hubert, por uma primeira voz potente. E esse foi o embrião da dupla sertaneja mais afinada, sincronizada, ritmada e festejada da história. A única que verdadeiramente cantava e tocava como se fosse uma única pessoa.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Saudosa voz

Uma das coisas que me dá saudades de vez em quando é daquela voz da locutora que anuncia o próximo vôo no aeroporto. Bem, na verdade é saudades do aeroporto inteiro. Desde sair do táxi no portão de embarque, passando pelo check-in, por aquele amontoado de turistas de várias nacionalidades, pela lanchonete que parece que, com preços ainda em reais, já cobra em dólar, da banca onde compramos revistas para esperar o vôo. Não sei quem disse que viagem é o dinheiro mais bem gasto que existe. Assino embaixo e bato o carimbo de autenticação. Toda vez que vejo alguma revista, anúncio ou reportagem sobre viagens, já sou transportado para a atmosfera de preparação que antecede a próxima. Escolher os destinos, traçar o roteiro - considerando os melhores dias para estar em cada lugar -, providenciar algum visto necessário, comprar uma ou outra cueca e meia, checar os limites dos cartões. Toda viagem tem um pacote básico de providências, que pode ser incrementado conforme as exigências do viajante abastado ou as necessidades do mochileiro. Mas a preparação mais cuidadosa ainda está sujeita a pequenas roubadas. São os famosos perrengues, que apesar de desagradáveis no momento em que acontecem, se tornam os melhores condimentos das suas memórias de turista. Já que a viagem oferece o benefício de sair do piloto automático, há que se receber de bom grado os imprevistos. Pois é disso que se trata a viagem, uma sucessão de descobertas a cada esquina. Viajar é sonhar de olhos abertos um sonho com nexo. Quando passo a responder 100% por reflexos condicionados, como antídoto eu me prescrevo uma viagem. O único problema é que, infelizmente, não sou eu quem pode me dar uma licença médica.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Engano

Você era de longe a resposta para a inquietação dos meus dias iguais - pena que só de bem longe mesmo. A cura para meu medo recorrente de menino assustado - como se para isso houvesse cura. A promessa de aconchego de uma tarde fria de outono - com direito a se aquecer no fogo. Você cruzou meu caminho quando eu só enxergava ruas paralelas - e ainda passou reto no vermelho. Invadiu minha rotina como trem descarrilado - e não parou nas estações programadas. Meus olhos logo fizeram festa no seu corpo - e eu achei que de convidado bicão dava pra ficar até o fim. Mas algo inesperado fez sombra no nosso terraço ensolarado - e eu vi a noite cair muito rápido. E logo a paz deu lugar a intenções desencontradas - com dedos em riste apontados em direções opostas. De repente o mundo voltou a ser terra firme - e fiquei com saudade de terremotos. Eu gostava de te ver como a peça de quebra-cabeça faltante - mesmo que nunca se encaixasse no meu vazio.

Espelho meu

Tem gente que não gosta de se ver em foto. Eu acho bem pior me ver no espelho. Fotos registram momentos felizes, revisitados com nostalgia. Já o espelho é a soma de todos os instantâneos da vida. Os alegres, os tristes e os entendiantes. É um Frankstein de vários vocês, de todas as épocas. Os cabelos brancos, por exemplo, juntam a mecha dos 8 meses de desemprego, com a mecha da sogra morando em casa, com a mecha das desilusões amorosas e por aí vai. A mesma coisa com as rugas: a do filho adolescente que não ligava está ao lado da ruga das noites viradas de trabalho. E claro, as cicatrizes: a do primeiro tombo de skate, a da cesariana. O Espelho-Frankstein também é uma junção de partes do corpo. O braço direito grosso contrastando com o esquerdo fino, do tenista destro. A orelha-mandiopã do lutador de jiu-jitsu. A unha preta do pé, do esquentadinho. A falta do seio esquerdo da sobrevivente do câncer. O Espelho-Frankstein nada mais é do que a sua imperfeição desnuda. A maioria das pessoas não trocaria o seu por outro. Frankstein por Frankstein, cada um que fique com o
seu.

Viaje antes que seja tarde

- E aí, vamos nessa?
- Putz…será que é seguro?
- Claro que é.
- Como você sabe? A gente nunca saiu desta rota antes.
- Sempre tem uma primeira vez.
- Mas se a gente voltar, eles já vão estar longe.
- A gente não vai voltar, o lugar é um paraíso.
- E se eu me cansar no caminho?
- A gente acha um barquinho e faz um pit-stop.
- E se não for um paraíso?
- Claro que é, eu vi no cartaz da agência de turismo.
- Você devia ter comprado um pacote.
- Tenho medo de voar.
- Como assim?
- De avião. Trauma de 11 de setembro.
- Tá bom, vamos, mas ninguém pode perceber.
- Então reduz a velocidade.
- Assim?
- Isso, até a gente ficar atrás do bando.
- Tá quase…. pronto.
- Agora me segue. Vamos sair pela direita, no meio das nuvens.
- Nossa…
- Que foi?
- É a primeira vez na vida que não sigo ninguém.
- Eu também e daí?
- Tô com medo.
- Do que?
- De não chegar a lugar nenhum.
- Calma, a gente tá quase chegando lá.
- Como você sabe?
- Olha aqui no meu iPhone, no Google –Maps.
- Ué, pelo mapa a gente tá bem em cima do lugar.
- É mesmo, devia estar aqui embaixo. Mas cadê as Ilhas Maldivas?
- Ilhas Maldivas??? Trouxa…
- Por que trouxa?
- As Ilhas Maldivas não existem mais. Aquecimento global.
- Ah, é? Não sabia.
- Tsc, tsc, tsc. Pato…

terça-feira, 19 de maio de 2009

Por que revejo filmes

O hábito de rever filmes, para alguém que como eu carece constantemente de beber em novas fontes, põe uma pitada de culpa no que deveria ser só prazer. Sem entrar no mérito do que nos faz assistir a histórias cujo final já sabemos, rever filmes dá um prazer danado, principalmente naqueles finais de noite onde sua mente está urgindo por informação já digerida. Mas que outros motivos nos leva a deixar de acrescentar novos títulos ao nosso repertório em favor de uma figurinha repetida? No meu caso, posso apontar alguns culpados. Primeiro é a burra grade de programação, que me impede de ver o filme que quero não hora que bem entender - não disponho daquele dispositivo que grava tudo durante o dia para ser revisto a qualquer hora, nem costumo baixar filmes da internet. Em consequencia disso, minha incapacidade de pegar filmes já começados, ainda que na introdução - faço questão de ver o leão da Metro rugir ou de ouvir as trombetas da Fox. E por último, o gosto de rever meus filmes prediletos e mesmo de entender melhor histórias que ficaram mal contadas - seja por roteiros confusos, pelo sono ou pelo namorico no sofá que desviou a atenção. Para o bem ou para o mal, repetir filmes é acima de tudo um grande prazer. Rever pela enésima vez o final de um filme de que você gosta é como rodar o vt do gol do título do seu time. Mesmo já sabendo o que vai acontecer, você cerra os punhos e comemora de novo.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Cada segundo como se fosse o último

Pentelha veio ao mundo numa tarde quente e abafada de verão. Assim como 99.999% dos indivíduos de sua espécie, seu nascimento passou despercebido, pois com exceção das lagartixas e sapos, quase ninguém presta atenção à eclosão de um ovo de drosófila. Do ponto de vista humano, drosófilas só vêm ao mundo para dedurar aquele que largou um pedaço de fruta ao léu ou esqueceu de jogar o lixinho da cozinha. Mas Pentelha nasceu determinada a mudar essa história. Queria provar que sim, uma drosófila pode deixar sua marca na vida - e não estamos falando daquele pontinho preto mergulhado num prato de sopa escaldante. Durante sua curta duração - do ovo à fase adulta, uma drosófila vive em média 12 dias -, Pentelha planejava ganhar o mundo ou pelo menos o quintal da casa onde nascera, se não desse tempo de ir mais longe. Saiu pela janela da área de serviço e ao receber rajadas de vento no rosto, se sentiu a mais livre das moscas. Não imaginava que o mundo pudesse ser tão vasto, colorido, encantador. Desejou viver intensamente cada segundo e, se não fosse tomar seu já escasso tempo, contar aos netos. A vida estendia os braços para Pentelha e ela queria mergulhar de asas abertas. Mas antes, sentia que precisava de uma reserva extra de energia. Por isso mirou uma casca de melão na boca de um latão de lixo e pousou para uma refeição ligeira de drive-thru. Era o néctar dos deuses. Ávida que estava por sensações novas, Pentelha não pode se privar de outras iguarias que encontrou dentro do latão. E havia de tudo um pouco: vidro de maionese com restinho, garrafinha de iogurte, embalagem delivery de comida chinesa, etc. Compreensível, já que para ela nem o arroz com feijão era rotina. E quando Pentelha se viu saciada, sua barriga a ponto de explodir, percebeu que não mais poderia alçar vôo. Em vez de fazer história, seus últimos dias não seriam muito diferentes da vida de qualquer outra drosófila. Nada que tirasse o largo sorriso de Pentelha. Porque os dois cantos de sua boca estavam lambuzados com restinhos de delícias que ela levaria para o túmulo: geléia de morango e feijoada.

domingo, 17 de maio de 2009

Um rival para chamar de meu.

Desde que o ser humano existe, as rivalidades foram criadas e alimentaram as competição entre os homens por um lugar ao sol. Imagino que o homem das cavernas já brigasse pelo título de melhor caçador de qualquer coisa-sauro ou conquistador de sexies mulheres peludas e descabeladas. Não importa o valor do prêmio, homens sempre se digladiaram pela glória, qualquer que seja o tamanho dela. E o que determina esse tamanho é a dificuldade, o alcance e a repecussão dentro da cultura em que está inserida. Por exemplo, por aqui é muito mais importante ser craque no futebol do que no palitinho. Ser campeão de surfe é inegavelmente mais valioso do que de cuspe a distância. Por outro lado, ser o fodão de Ipanema parece ser melhor do que do Bairro Peixoto. Mas no Bairro Peixoto, vale o contrário. Logo, antes de sairmos no tapa com nossos adversários, deveríamos refletir pelo que - ou por quem - estamos levando uma disputa as últimas consequências. E até tirar o time de campo quando a briga parecer injustificada. Pode-se alegar que isso é ir contra o instinto humano, o de luta pela sobrevivência segundo a lei do mais forte. Talvez, mas não estou falando de seguir o instinto e sim de ouvir a razão. Claro que movido pela vaidade, o gostinho de vencer fica potencializado quanto mais o adversário é forte e respeitado. Mas em última instância, deveríamos lembrar que o prazer de vencer vem de superar a si mesmo e não aos adversários. É isso que vejo, por exemplo, no tenista Rafael Nadal. Em nenhum momento de sua vitoriosa carreira Nadal se mostrou arrogante, seja desdenhando de adversários na vitória, seja dando desculpas esfarrapadas nas suas poucas derrotas. Ao contrário, o espanhol conserva sempre uma atitude serena, de quem só está preocupado, ou melhor, ocupado, em fazer bem o seu trabalho, que é jogar tênis. Claro que o fato de existirem adversários como Roger Federer e Andy Murray só o motivam e valorizam suas conquistas. Mas no fim das contas, Nadal só é um fora de série porque sabe que o adversário a ser superado hoje é o Nadal do dia de ontem, o de tantas glórias acumuladas. Infelizmente isso parecer ser para poucos, para os verdadeiros campeões. Eu, por exemplo, continuo comprando briguinhas com rivais imaginários ou fugindo do pau quando deveria continuar na luta. Afinal, não tenho o discernimento de um deus como Nadal. Sou apenas um reles mortal, mas, pensando bem, que bom.

sábado, 16 de maio de 2009

Cobrança maligna

Acabei de ver uma entrevista do Galvão com Ronaldinho Gaúcho. Nada de novo. Com o costumeiro tom paternalista, o entrevistador foi só elogios ao já decantado talento do genial Gaúcho, tendo ao fundo suas jogadas e gols antológicos. Mas isso durante a entrevista. Porque no final dela, Galvão se despediu desejando que o jogador voltasse a ser "o cara". Não pude deixar de entender isso como uma cobrança, que não só Galvão faz, mas também a maioria dos brasileiros e a imprensa mundial. Que Ronaldinho volte a jogar o futebol-malabarismo exuberante dos tempos de Barcelona. A suposta cobrança do entrevistador me pareceu fora de contexto , visto que no decorrer da entrevista Ronaldinho frisou o tempo todo que o importante era ele estar feliz com seu futebol e consigo mesmo. Porque é nítido que a cobrança excessiva pesa sobre os ombros do jogador e na mesma medida o afasta de seu futebol. Aliás, cabe conjecturar se o problema não reside exatamente em cobrar de Ronaldinho a performance que ele não consegue mais repetir. Não que não tenha talento e juventude para isso, mas porque talvez não esteja mais tão disposto. Além de ser difícil reproduzir aquela confluência de fatores que levam alguém a experimentar seu ápice, não há mais o desafio da provação que é o combustível dos primeiros anos. Vide os roqueiros, que costumam estourar na faixa dos vinte anos. Há excessões como Picasso e Miles Davis, que conseguiram se manter no topo quase ao longo de toda vida. Mas esses são casos raros, o normal são os que colecionam altos e baixos. Ronaldo Gaúcho é um deles e deixou transparecer na entrevista que só quer continuar fazendo o que mais gosta, que é jogar futebol. Só não botou para fora um "me deixem em paz" porque se trata de um rapaz tranquilo e boa praça. Quem sabe se os deixarem sozinhos, ele a bola, os dois consigam reviver a paixão de antes e a gente possa presenciar de novo aquela exuberância, como nos acostumamos naquelas longínquas tardes de domingo.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Preço justo

O sonho da casa própria seria adiado por um tempinho, avisou Joilson à conformada esposa Maricota. Por ora o dinheiro guardado ao longo de toda uma vida seria empregado num projeto mais ambicioso: a construção de um pedágio na estradinha, bem em frente ao terreno do casal. Tudo foi muito bem arquitetado. Joilson convocou uma empreitada entre seus compadres, pagando o mínimo e mais a cachaça. Usando cones e sinalização, o fluxo de veículos foi desviado para o acostamento sem despertar a suspeita da polícia rodoviária. Em três meses o pedágio de três cabines estava concluído. Inclusive com cancela, sensor, máquina de impressão de recibos e todos os acessórios que um primo tranbiqueiro da capital conseguiu sei lá como. Maricota, seu irmão e uma prima ocupariam as três cabines enquanto Joilson organizaria toda a parte financeira. Logo no dia seguinte o pedágio começou a operar de vento em popa. Maricota nunca tinha visto tanto dinheiro na sua vida. Em pouco tempo o lucro daquilo daria para construir não uma casa, mas uma vila inteira. Os motoristas passavam reclamando dos buracos no asfalto, sem entender como o dinheiro arrecadado não remediava a situação. Depois de alguns meses, Maricota já podia enxergar de dentro da cabine os frutos de negócio tão lucrativo: sua casa já estava sendo erguida no terreno que margeava a estrada. Joilson já era o homem mais rico do povoado, que nunca vira ascensão tão rápida em dois séculos de existência. Mas os motoristas começaram a olhar para os cobradores com desconfiança. Os mais cabreiros perguntavam se o valor do pedágio, quatro reais, estava mesmo certo. Onde há fumaça há fogo, e num belo dia o projeto deu água. Umas vinte viaturas baixaram de uma só vez no pedágio, rendendo Maricota, o irmão e a prima, e pegando Joilson de surpresa instalando a cancela do Sem Parar. Algemado mas sereno, Joilson ainda teve presença de espírito para tentar saber como fora pego. Ele perguntou isso ao investigador, que seca e prontamente respondeu "o preço do pedágio". Não era possível que tivesse cometido essa gafe. Ele que se precavera tanto encomendando uma pesquisa de mercado em estradas de norte a sul do Brasil. Mas quando a viatura passou por um pedágio de verdade e Joilson viu a tabela de preços ao lado da cabine, surpresa. Perto dos cinquenta reais cobrados pela concessionária da estrada, sua tarifa era uma ninharia. Estava congelada desde a inauguração e não acompanhou a inflação nem a ganância dos governantes. E como de muita esmola o pobre desconfia, deu no que deu. Mas você pensa que o pedágio do Joilson foi desativado e demolido? Que nada. A concessionária passou a explorá-lo normalmente. Só toma o cuidado de não levantar suspeitas cobrando um preço justo: os mesmos cinquenta reais praticados por qualquer pedágio oficial.

Desgarrada

Sabe essas pessoas que parecem estar sempre no contra-fluxo? Antonieta é uma delas. A começar pelo próprio nome, pouco usual para uma geração de Julianas, Carolinas e Larissas. No auge de seus 17 anos, Antonieta insiste em ser nada cocota. Pouco se maqueia, se veste sem afetação e nem fazer biquinho sabe. Não que careça de atrativos físicos, pelo contrário, mas detesta usar truques femininos. Prefere tentar seduzir adolescentes cheios de espinhas com seus dotes intelectuais. Sim, elas os tem e de sobra. Cultivados precocemente por um sofisticado gosto que não foi herdado. Sempre trocou as idas ao shoppings por tardes na biblioteca. Os shows com ingressos disputados a tapa por apresentações da orquestra sinfônica. Os sites de relacionamento por clubes do livro. Mas engana-se quem acha que ela é só uma intelectual. Antonieta pode ser encontrada eufórica no meio da uma torcida organizada. Do Bangu. Ou no meio de uma micareta, tocando bongô em cima do trio elétrico. Ou ainda, na praia mais balada do litoral norte, fazendo estágio de salva-vidas. Ué, não tem gosto pra tudo? Antonieta tem alguns especiais, de que não abre mão. E por fazer questão de ser autêntica, acaba vivendo num mundo a parte, onde o Big Brother, a Mulher Melancia e o a Dança do Créu não tem o menor espaço. Que mundinho esquisito o seu, hein, Antonieta?

terça-feira, 12 de maio de 2009

Pacote de felicidade

Moro sozinho e quase sempre minha geladeira e minha despensa estão vazias. Normal na vida dos solteiros, o disque-pizza está aí para isso mesmo. Fazer o supermercado está longe de ser meu programa favorito. Admito que tenho preguiça e sinto culpa - eu, que tenho condições de comer nesse país tão pobre. E é disso mesmo que eu queria falar, sobre o quanto nós, privilegiados, não reconhecemos nossa bem-aventurança. Afinal, como ouvi uma vez, já viemos ao mundo no terceiro degrau da escadaria. Somos, como diria uma tia conservadora, moças e moços da família. Bem-nascidos, formados, com boas chances de progredir na vida e quase nenhuma de acabar na sarjeta. Em comparação com a maioria, você pode ser até rico e não sabe. Então por que muitos de nós não dão valor ao que tem? Será que o que vem de bandeja não conta? Ou somos eternos inconformados? Ou porque reclamar é humano? Ou ainda, numa explicação sociológica, o descontentamento é a mola propulsora do progresso? Bom, pode ser um pouco de tudo isso. Mas aproveitando que o tema felicidade está tão em voga, talvez obteremos algumas respostas resgatando outro tema que anda fora de moda: a gratidão. Porque iludidos pelas promessas da mídia, não raro condicionamos nossas felicidade a metas impossíveis, a sonhos distantes, a prêmios que nem sabemos por que perseguimos. E a felicidade é um chavão, está mesmo nas coisas simples. Você trocaria o sorriso do seu filho quando você chega em casa por um carro zero? Ou um bom papo de bar com seus melhores amigos pela reunião do G7? Você se lembra de quanta coisa legal aconteceu na sua vida esta semana e nem percebeu? Não? Ora, não seja mal agradecido. Eu por exemplo, estava vasculhando meu armário quase sempre vazio quando encontrei sem querer um pacote de biscoito que nem lembrava que tinha comprado. Bem quando estava morrendo de fome e ia começar o jogo do Verdão. Viu como a gente pode ser feliz e não sabe?

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Crescer no interior

Há muitas coisas que definem uma infância passada numa cidade do interior - no meu caso, coisas de uns 30 anos atrás, que na maioria nem se aplicam mais aos dias de hoje. Mas enfim, naquele tempo crescer no interior era comer goiaba e chupar manga no pé - o que até hoje me faz estranhar ter que pagar por elas no Pão de Açúcar. Crescer no interior era ir a pé para escola contando a distância em quarteirões e não em minutos ou horas como aqui em São Paulo - e sem variações por causa do trânsito. Crescer no interior era comprar carne em açougues de carroça - bom, isso nem sei se existiu em outras cidades e só mostra o quanto estou velho. Crescer no interior era afiar faca na porta de casa, com o afiador que se anunciava com um apito que imitava uma flauta. Crescer no interior era comprar refrigerante no bar da esquina, levando engradado vazio para trocar na compra - e sempre cruzar com os vizinhos bebuns de sempre até que a bebida os levasse daquele mundo. Crescer no interior era juntar todas as crianças da vizinhança para jogar queimada, mãe da rua, vivo-morto, esconde-esconde, passa-anel, telefone sem fio e todos os nomes equivalentes dessas brincadeiras quase extintas. Crescer no interior era esperar sua mãe chamar para tomar o café da tarde, sempre com bolinhos de chuva ou pães feito em casa deliciosos, saídos do forno. Crescer no interior era saber que o seu pai havia chegado ao ouvir o cachorro começar a latir assim que o carro dele dobrava a esquina. Crescer no interior era jogar bola na rua, no quintal, no terreno baldio, no campo de várzea, no pátio do depósito sem segurança, enfim, onde houvesse qualquer espaço livre e qualquer bola que rolassse mais ou menos - e não julgar garotos de rua que se aproximavam como marginais e sim como possíveis parceiros de pelada. Crescer no interior era sair para a rua de banho tomado no final da tarde e encontrar todos os vizinhos sentados em cadeiras que cada um colocava na frente de sua casa para observar o movimento e bater papo. Crescer no interior era chegar na capital e passar mal dentro do carro ao sentir o mal cheiro do Rio Tietê. Crescer no interior era sentir um alívio ao chegar de viagem e reencontrar seu cachorro saudoso, que ficara aos cuidados do vizinho. Crescer no interior era poder sair de casa 10 minutos antes da sessão de cinema começar e, pasmem, ainda conseguir um ótimo lugar na platéia. Crescer no interior era não ter a menor idéia do que fosse um condomíno fechado - até porque naquela época ainda nem deveria existir. Crescer no interior era muitas, muitas coisas boas. Ai, que saudade...

domingo, 10 de maio de 2009

Último dia no escritório

Ainda era meio da tarde quando colocou os últimos pertences da gaveta dentro da caixa de papelão. Olhava para os colegas com um sorrisinho sem graça, já nostálgico daqueles dezessete anos compartilhando trabalho e happy hours. Lembrou-se de seu primeiro dia no departamento, da estranheza do lugar, de como João e Alfredo foram bacanas mostrando como é que se fazia o serviço básico. Agora, tanto tempo depois, poderia chegar a sua mesa de olhos fechados, sem titubear, ligar seu computador e até digitar um memorando se fosse preciso. Neiva, uma escriturária mais antiga que ele na casa, parou ao seu lado e deu-lhe um abraço solidário de quem espera que tudo corra bem "em sua nova jornada". Ernesto agradeceu comovido e disse que sentiria falta de jogar conversa fora com ela, enquanto o café descia queimando goela abaixo. Dona Maria se abaixou por baixo da mesa e esvaziou pela terceira vez no dia seu lixo lotado de memórias de que agora ele se desfazia. Olhou para o relógio, que já marcava 17h30. Checou todo o procedimento de saída: backup dos arquivos, ok; gavetas limpas, positivo; doação de livros e objetos de mesa para os colegas, feito; email de despedida, enviado. Não faltava mais nada, era se levantar, abraçar os mais chegados e tomar o rumo da porta. Foi o que fez, elegendo João, Alfredo, Antonia e Luisa para os abraços derradeiros. Depois, sob aplausos e votos de "boa sorte" e "sucesso", Ernesto passou pela porta com um aperto no coração. Fechou a porta atrás de si e depositou sua caixa sobre o tampo de sua nova mesa. Dentro da sala-aquário de vice-presidente, isolado do burburinho do salão a que ele se acostumara, Ernesto respirou fundo e pelo vidro, olhou comovido para seus ex-colegas, agora seus subordinados. Parecia que estes já olhavam para ele de um jeito diferente, sustentando sorrisos sem graça de aprovação. Foi nesse instante que ele percebeu que nada mais seria como antes.

A pessoa da foto

Outro dia estava mostrando fotos da minha viagem a China que fiz em 1998 a um amigo quando ele fez uma observação que me intrigou. Disse que eu estava diferente e eu obviamente achei que se referia aos 11 anos de juventude que perdi de lá para cá. “Não é isso”, falou, mas também não conseguiu me explicar. Eu dei de ombros, mas, reflexivo que sou, mais tarde comecei a tentar entender o que meu amigo tinha enxergado na foto. Peguei o instantâneo e fiquei olhando para mim mesmo sentado nas escadarias da Grande Muralha, ao lado do Marcelo, colega de trabalho na época. Vendo assim de fora, de uma posição distante no tempo e no espaço, eu intuí que meu amigo de fato tinha visto outra pessoa naquela foto. Porque eu também estava vendo um estranho, de certa forma. Claro que quase tudo que nós somos, trazemos dos recônditos da infância, das primeiras impressões da vida e isso não muda. Mas os anos também acrescentam e eliminam muita coisa em nossas personalidades e comportamentos. Só que essas mudanças são algumas vezes imperceptíveis, principalmente se você se olha todo dia no espelho. Olhei para aquele sujeito, eu mesmo há 11 anos, e fiquei pensando na minha vida desde então. Quais tinham sido minhas escolhas, se havia obtido êxitos, no que tinha fracassado. E também no que poderia ter me tornado se a trajetória tivesse sido diferente. Por exemplo, se na volta para o Brasil tivesse decidido me tornar um andarilho, um hippie, o oposto do publicitário que me tornei. Por esses dias estava discutindo com a minha terapeuta a respeito de liberdade. Se era verdade mesmo que o leque de escolhas que temos hoje representa uma avanço de liberdade em relação a época dos nossos pais. Ela disse que não, que isso é uma ilusão que nos tentam vender para encobrir o fato de que vários fatores limitam a gama de escolhas associada a vida moderna. De fato teoricamente hoje temos mais opções de carreira para seguir, lugares ao redor do globo para morar, mais oferta de informação e de oportunidades. Teoricamente, pois na mesma medida exercer essa liberdade de escolha é muito difícil. Alcançar algum êxito em qualquer atividade exige constância e tempo, e poucos são capazes de jogar para o alto o que foi conquistado com suor para seguir, por exemplo, um sonho de adolescência. Porque também precisamos separar desejo de necessidade, vaidade de vocação verdadeira. Ao escolher viver em sociedade, aceitamos padrões de convivência e busca de valores comuns a nossos semelhantes. É uma concessão que fazemos para ser aceitos e queridos por pessoas que nos rodeiam e que “pensam como nós”. Divergir dessa conduta, a certa altura da vida, é visto como atitude de moleque. Isso não quer dizer optar pelo conformismo sempre que uma vozinha interior clamar por mudanças. Ainda preservo em mim uma atitude contestatória a respeito de minha vida e principalmente do modelo social que a mídia vende o tempo todo. Sei que há um cinismo por trás dos interesses de uma economia de mercado. Por isso minha maior busca é pela lucidez, saber-se parte de um sistema, mas não ser escravo dele. Há 11 anos atrás, aquele rapaz da foto tinha muito menos dúvidas sobre suas escolhas do que o cara que digita este texto. Afinal,estava de férias no exterior graças a uma aposta de carreira que julgava acertada. Hoje, se perdi aquela ingenuidade saudável, ganhei em sabedoria para discernir o que faço e porque faço. Assim minhas escolhas, ainda que não totalmente livres, podem ser no mínimo mais conscientes.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Profissão ingrata

Sem dúvida uma das profissões menos reconhecidas do mercado é a de anjo da guarda. Como é sabido, o trabalho do anjo da guarda não tem nenhuma visibilidade. É não remunerado, em período integral e sem direito a folga. Um anjo da guarda muito competente costuma trabalhar para o mesmo cliente durante 80, 90 anos. Basta uma pequena desatenção, por exemplo, não conseguir desviar o cliente de uma casca de banana, para ele ser prontamente despedido por negligência. Isso até poderia ser um consolo, um desemprego bem-vindo depois de anos de labuta. Mas que nada. Do jeito que a população cresce, e os anjos, como se sabe, não se reproduzem, quando um perde o emprego, é imediatamente realocado para atender um recém-nascido. Por isso eles estão sempre estressados e daí tantas mortes bestas. Certa vez até cogitaram fundar um sindicato. Mas alguém lembrou que fazer piquete em porta de maternidade não seria condizente com um anjo. Não é de se estranhar que os anjos da guarda sonhem com uma transferência para cargos de cupido, imagem de igreja e estátua de chafariz. Anjo da guarda é uma espécie de guarda costas que só pega a parte ruim da profissão. Porque nem pegar a cliente eles podem.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Disneylândia

Antes do horário marcado pai e filho já estavam na porta. O pai, um anão de 1,20 m, garoto de programa. O filho, seu membro de 45 cm, que o pai chamava de Junior. O anão encarava seu trabalho assim mesmo, como se levasse seu pequeno para um passeio. Aliás, foi Junior que, ereto, acabou empurrando a porta, que estava destrancada. O anão e seu membro sorriram feito crianças ao avistar aquele parque de diversões de 1,80 m de extensão. Logo estavam em cima da cama, na entrada do primeiro brinquedo. Dois pés delicados prenderam Junior entre eles e começaram um movimento rápido de sobe e desce. O sangue subiu e o garoto saiu de lá tonto. Mas logo se recuperou para a próxima atração, que era incrível: um tobogã de pernas que terminava dentro do túnel do amor. Junior adorou escorregar e entrar ali. Só saiu porque o pai o chamou para a montanha russa. Que na verdade eram duas e espanholas. O barato não era subir e descer as montanhas, mas ir e voltar encaixado entre elas. Emoções fortes. Junior saiu com dor de cabeça, mas ainda excitado. E assim chegou ao último brinquedo. O mais perigoso de todos: uma gruta viscosa com estalactites por cima e por baixo, que podia se fechar a qualquer instante e esmagar quem ali se aventurasse. Foi muita emoção para o garoto, que vomitou lá dentro e tombou exausto. Fim de passeio. O anão botou seu filho para dormir na cueca. Depois, pegou seus 200 reais no criado mudo e saiu com cara amarrada, escondendo sua felicidade. Porque para ele podia ser pura diversão. Mas para suas clientes, era melhor continuar parecendo um trabalho duro.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Rotina, ame-a ou deixe-a

Estou eu aqui trabalhando nessa terça-feira como outra qualquer, pensando que logo mais é sexta, e um pouco mais é meio do ano. Engraçado é que outro dia estava dando lição de vida, falando que todo mundo deveria fazer algo a 180 graus da sua rotina de vez em quando, para ver no que dava. Mas coisa ousada, não vale só trocar o percurso casa-trabalho-casa. Aí eu me deparo com a fronteira primeiro/segundo semestre e vejo que não fiz 20% do que preguei. Só algumas tentativas de mudar de rota em 4 meses. Mas eu sei porque e tenho que admitir. Gosto da rotina. Além da conta. Gosto de voltar e ficar em casa. Gosto de DVD e de livro. Gosto de papo no mesmo bar e com os mesmos amigos. Hoje, por exemplo, daqui vou correndo ver meu time enfrentar de novo o mesmo adversário de algumas semanas atrás. Provavelmente acompanhado daquela mesma pizza que nunca chega fumegante em casa. Normal. O ser humano, como dizem os psicólogos, tende à zona de conforto, se apega ao conhecido. Mesmo quando chamamos de conforto um sofá puído com uma ripa pegando na coluna por baixo do estofado frouxo. Mesmo com a pulga cutucando o tempo todo atrás da consciência. Mas quer saber, conforto nenhum compensa a falta daquele friozinho na barriga que faz a vida valer a pena. Por isso minha promessa para meu reveillon imaginário de meio de ano é correr mais riscos. Até Sísifo - aquele que no mito grego foi condenado a rolar uma pedra todos os dias até o topo de uma montanha, que em seguida voltava a rolar morro abaixo - poderia ter escapado da rotina. Poderia ter subvertido seu calvário num esporte radical de montanha, por exemplo, um downhill pedestre onde o atleta tivesse que fugir da pedra rolante. Pensando bem, a gente não precisa dar uma guinada absurda no dia-a-dia. Basta construir uma rotina suficiente divertida para nunca enjoar dela.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Escolhas

Hoje ele decidiu que não passaria mais noites pensando na vida, porque só o deixava cansado. Ele decidiu que não ia mais pensar em se desviar do caminho do trabalho para tomar aquele sorvete com sabor de infância. E decidiu que nunca mais contestaria seu chefe, que havia garantido todas aquelas promoções para cargos que ele nem queria. Decidiu que não ia reencontrar os amigos do colégio, porque do passado só se guarda as memórias. E decidiu que seu filho seguiria sua profissão e que sua filha, se casaria bem. Decidiu doar seu velho violão, porque como seu pai lhe dizia, música é coisa de vagabundo. Também decidiu que não compraria outro cachorro para o lugar do Totó. Decidiu que manteria no banco o sonho do negócio próprio. Enfim, decidiu ser assim um cara decidido. Porque hesitar dá muito nervoso.

Bem-vinda, insanidade

Insanidade que se hospeda em mim, põe sua cabeça para fora e dá uma espiada. Aqui fora tudo tudo está normal, tão aquietado que me assusta. Tão ajustado, milimétrico, previsível, dá calafrios. Detesto a vida assim receita de bolo de chocolate da vovó. Quero fazer um pudim de merda se necessário. Pra arrebentar essa couraça aqui de dentro, só se acordar o homem-bomba interno. É perigoso, mas não vejo outra saída. Os revolucionários já estão na fronteira, loucos para invadir. Porque o sistema atual está caduco. Um novo quer entrar para expulsar a lógica. Abaixo o bom-senso. E leva contigo o sucesso e a riqueza, drogas perversas. Chega de fazer sentido. Desisto. Quero respirar com os poros. Olhar nos olhos e te enxergar mais fundo. Ir a favor do espelho, não contra.