domingo, 28 de junho de 2009

O homem que não suava

Quando o bebê veio a luz, o obstreta, estupefato, percebeu que sua pele delicada e macia já estava completamente livre da menor gotinha de líquido amniótico. É como se o recém-nascido tivesse passado por uma limpeza detalhista de suas dobrinhas com o melhor óleo higiênico do mundo. Esse foi o primeiro de todos os banhos que Astolfo dispensou em sua vida. Não demorou para sua mãe perceber que, embora tivesse nascido na época mais quente daquela região equatorial, Astofo simplesmente não suava. Podia ser dia de sol escaldante e vento parado, não havia meio de fazer gotejar o que fosse dos poros daquele bebê de bem com a vida. Os médicos tentaram desvendar o mistério, mas só se enrodilharam em debates que nada esclarecia sobre o fenômeno. Enquanto isso, Astolfo crescia de vento em popa, como se um ar condicionado invisível o acompanhasse por todos os cantos, naquela terra onde se fazia 40 graus de média a sombra. Com o tempo se demonstrou que o fato de não suar era na verdade uma metáfora da disposição de Astolfo para a labuta. Que era nenhuma. Sua vocação de bon vivant foi se confirmando em todas as etapas de sua vida. Primeiro como excelente aluno de primário, onde resolvia complexos exercícios matemáticos sem pestanejar. Depois, com as mulheres, que lhe caíam no colo sem o menor esforço. E depois, no trabalho, cujo primeiro emprego foi logo abortado, por conta da bem-vinda chegada da abastada herança de um tio solteiro. Astolfo nunca movera uma palha. Inclusive para implantar seu grande projeto de vida, financiamento e colaboradores surgiram como num passe de mágica. Tratava-se da reedição da arca de noé, uma construção faraônica em madeira no formato da bíblica embarcação e que seria usada como um imenso zôo com todas as espécies catalogadas pela ciência. Em poucos dias, Astolfo conseguiu atrair os animais, que confinou em simulações dos ambientes naturais de cada espécie dentro da arca. No dia da inauguração uma multidão se formou, aguardando sua vez de conhecê-la. Foi quando Astolfo, parado junto a entrada da arca para agradecer as saudações do público, começou a gotejar suor de seu rosto pela primeira vez em sua vida. O filete do líquido escorria cada vez mais forte, afastando a multidão, até tomar a proporção de uma comporta de hidrelétrica que se abria. Tudo em volta da arca se inundou, formando um grande lago onde a arca começou a boiar. As pessoas se afogaram e a vida na Terra se extinguiu, com exceção dos seres dentro da arca. Essa história poderia ser uma grande lição de moral encerrando algo como "na vida , nada de bom vem sem suor" ou algo do tipo. Mas o fato é que Astolfo e sua mulher conseguiram entrar na arca, sendo os únicos humanos a sobreviver. Depois que a água abaixou, todos os animais que a arca salvou acabaram reproduzindo o paraíso, como numa segunda versão de Adão e Eva. Astolfo, tal qual eu destino havia selado desde seu nascimento, poderia passar o resto de seus dias ao lado de sua Eva, sem fazer um caralho para viver muito bem.

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