domingo, 19 de julho de 2009

Metalinguagem

- Que cara é essa aí? Tá viajando, mano?
- Não, tava aqui pensando no que eu vou ser quando crescer.
- E desde quando pobre como a gente tem direito de pensar nisso?
- Ah, sei lá, não dizem que sonhar não custa nada?
- Isso aí é letra de samba enredo, da Mangueira.
- Não, mané, é da Padre Miguel. Mas, pô, não desvia o assunto.
- Tá bom, então diz aí o que você quer ser.
- Cineasta.
- Cine, o quê?
- Ci-ne-as-ta.
- Ah tá, o tal que faz pesquisas.
- Não, mané, esse aí é o cientista. Eu tô falando do cara que faz cinema, filme, entendeu?
- Sei, mas isso dá dinheiro?
- Ô se dá, não conhece o Valti Salles?
- Valti Salles?
- É, o cara é cineasta e banqueiro, uma coisa leva a outra.
- Não entendi muito bem, mas ok, continua.
- Então, eu queria fazer um filme sobre a gente.
- Sobre a gente? Mas a gente não faz nada de interessante.
- Mas é sobre a nossa vida aqui na favela, nossos pobrema, nossas dificurdade.
- Só nessa frase aí tem dois problemas.
- Quê?
- Deixa pra lá.
- Mas voltando ao assunto, cê acha que rola de eu fazer um filme? Será que eu levo jeito?
- Bom, se for filme de sacanagem...
- Eu sinto como se tivesse a mão, o jeito, a sensibilidade atrás de lente para contar uma grande história.
- É, você é cheio de historinha mesmo, um caôzeiro da porra.
- Bom, aí eu teria que arrumar dinheiro, porque fazer filme é muito caro. E você podia ser meu assistente.
- Que assistente o quê. Já tá querendo me dar trabalho?
- Não, eu vou te dar a chance de brilhar ao meu lado. Vamos ficar famosos!!
- Quero minha parte em grana.
- Isso é um sim, topa fazer um filme comigo?
- Só se for como ator.
- Ator? Mas como, se você nunca fez nada no palco, na televisão?
- Mas tenho horas de experiência em frente a câmeras de vigilância. De condomínio, loja de conveniência, assalto a banco, ninguém fica tão a vontade ali como eu.
- Tá bom, tá bom, eu até arranjo uma ponta.
- Uma ponta? Eu vou me matar de trabalhar e você vai me pagar com uma ponta de baseado?
- Não, burro, ponta é um pequeno papel no filme.
- Não, não, eu quero o papel principal.
- Não, o papel principal vai ser o meu.
- Nana-nina. Ou eu faço o principal, ou tô fora.
- Tá bom, vai ter dois papéis principais, um para você, outro para mim.
- Combinado.
- Então vambora.
- Já?
- É, vamos captar recursos pra pagar o filme.
- Financiamento?
- Financiamento forçado: assalto a banco.
- Opa, minha especialidade.
- Mas não se esquece de colocar a meia na cabeça, hein, mané?
- Não vou usar não.
- Como assim?
- Agora que vou fazer cinema, quero exercitar mais meu olhar para as câmeras.
- Bom, cê que sabe. Mas vambora que o carro forte já deve estar descarregando o pagamento. Bora, Bené.
- Bora lá, Dadinho.
- Ê...vai começar?
- Brincadeira. Bora lá, Zé Pequeno.

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