domingo, 27 de fevereiro de 2011

Alegria e tragédia em cachoeira urbana


O Ricardo me chamou pra um bloco na Vila Madalena e eu, mesmo desencorajado por um céu cinzento, fui e ao chegar achei que foi bom negócio.
A galera animada, várias meninas bonitas e uma banda digna da nossa cidade "túmulo do samba", só que desta vez enterrando também a marcha carnavalesca.
Tudo ia tranquilo, até que o trio resolveu andar e puxar a boiada, acompanhado pelo engrossar da chuva, que a esta hora já fazia jus à São Paulo e à estação.
Em poucos minutos estávamos encharcados, mas em vez de incômodo me sentia alegre com aquela cachoeira urbana inesperada, que me oferecia um banho a céu aberto.
A campanha de economia de água da Sabesp parecia até não fazer sentido, pois ainda poderíamos recorrer a um banho coletivo na chuva.
Mas como felicidade costuma durar pouco, eis que a chuva começa a mostrar suas garras, enviando um raio aqui e outro ali, prenunciando que entraria no ar mais um capítulo da tragédia paulistana que se tornou os temporais de verão na cidade.
Dito e feito, testemunhamos desabar uma mureta que cercava uma casa construída em terreno baixo, e eis que a tarde tranquila daqueles moradores, provavelmente na companhia do sonolento Faustão, se torna o simulacro da tragédia brasileira de verão, as enchentes.
É um corre pra lá e pra cá e absolutamente nada para fazer, pois a chuva deixou a casa em banho maria, provavelmente destruindo tudo. Sobrou para o cachorro da casa vizinha, que nesse interim se atracou com outro cão desavisado e protagonizou por uns instantes o climax dessa história triste de uma tarde de verão.
Me senti ao mesmo tempo impotente e culpado, pois pela primeira vez testemunhava a olho nu uma chamada de Jornal Nacional das que tanto assisti por conta do infortúnio da região serrana fluminense, para não citar outras regiões brasileiras e mesmo a situação na Austrália.
Impotente porque o estrago estava feito, em poucos segundos uma vida de sacríficio se fora com as águas e só nos restava lamentar.
Culpado porque há pouco minutos eu me condoía por ter perdido mais um celular, encharcado no bolso, perda que ficou ínfima perto do lamento do morador da casa.
Enfim, a força da natureza mais uma vez mostrou do que é capaz com uma simples chuva.
Seja para fazer o pessoal de um bloco carnavalesco se mexer para não passar frio seja para transformar a vida de uma família em um caos em questão de segundos.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Eu quero ter fé na vida como a Adélia

"Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera."

(Do poema "Leitura", de Adélia Prado)

Espelho meu


Conheço algumas pessoas que possuem uma qualidade rara que aos olhos do mundo chega a soar farsante: a capacidade de dificilmente falar mal ou reclamar de alguém.
Reclamar se tornou um hábito tão comum e aceitável - e porque não dizer, até socializante - que até duvidamos de quem não é praticante desse esporte de escritório e mesas de botequim.
O que na verdade pode ser uma tremenda injustiça com quem está "de bem com a vida". Mais do que isso, com quem aprendeu a aceitar suas próprias limitações.
Outro erro que se comete é às vezes atribuir ao reclamão uma personalidade forte e ao indivíduo tranquilo uma aceitação passiva das coisas.
Ledo engano.Quase sempre o reclamão contumaz esconde uma grande dificuldade de encarar seus próprios erros e limitações. Em vez de procurar entender as razões de sua insatisfação e reconhecer em si o responsável por ela, prefere atribuir ao outro "a culpa" de seu insucesso.
Encarar o espelho de fato não é fácil. Gostaríamos de ser lindos, inteligentes, espelhar a imagem do sucesso midiático como garantia de não sofrimento. Mas até ao mais bem sucedido figurão de Hollywood é impossível corresponder ao mito que ele próprio fabrica nas revistas de fofoca.
Outra coisa que não nos ajuda em nada é a cultura imediatista e preguiçosa, que propaga que sucesso mesmo é se dar bem rápido e sem esforço.
Sem contar que mudar, investir num novo projeto sem garantias de retorno, pode ser tão trabalhoso quanto desanimador.
Com tanta coisa jogando contra o nosso sucesso, não é de se estranhar que preferimos mesmo é meter o pau nos nossos pais, chefes e pares que não nos reconhecem e nos impedem de atingir o olimpo.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Homenagem aos mórbidos


Faz tempo que estou para homenagear aquelas pessoas mórbidas que costumam reduzir a velocidade no trânsito só para dar uma espiadinha em algum acidente, na esperança de enxergar algum cadáver estirado no asfalto, ensopado de sangue.
Obrigado por reduzir a velocidade e passar em procissão pelos corpos acidentados.
Obrigado pelo sinal da cruz, apesar de traduzir mais um "ufa, obrigado Senhor por não ter sido eu" do que um sinal de respeito.
Obrigado por atrapalhar o trânsito, ligando o foda-se para quem está atrás.
Obrigado por esquecer imediatamente o acidente e não mudar em nada sua conduta irresponsável no trânsito.
Enfim, motoristas mórbidos, obrigado pela curiosidade e pela indiferença.
Sem vocês, o espetáculo das mortes no trânsito não teria platéia.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

O jornal saído do forno


Outro dia me liga uma vendedora de telemarketing se anunciando como representante da Folha de São Paulo.
Logo pensei, "lá vem".
Há de chegar o dia em que alguém representando a Folha ou qualquer outro jornal me ligue oferecendo alguma inovação tecnológica do tipo, uma âncora de telejornal holográfica logo de manhã ao pé da minha cama, me entregando as notícias fresquinhas do dia ou quem sabe, algo mais.
Mas a telemarketeira me ofereceu mesmo foi uma "assinatura-cortesia" do jornal por 20 dias, o que prontamente recusei porque há tempos não acredito em cortesias por parte de editoras, cartões de crédito e afins.
Nao vou dizer que não goste do cheiro do jornal saído do forno, pelo contrário, isso me cheira a pura nostalgia de infância, dos tempos em que meu pai folheava as primeiras notícias do dia degustando o café da manhã com aroma de café fresquinho no ar, e eu ali presenciando aquele ritual caseiro que imaginei durar para sempre.
Mas os tempos mudam e hoje, longe do seio familiar, me vejo acordando aos solavancos, quase sempre depois de insuficientes horas de sono, reduzidas pelo trabalho extra, pela leitura ou filme na madrugada ou pelos apelos da noite paulistana.
Cabe à internet a tarefa de não me deixar totalmente à parte do mundo quando chegar ao trabalho, para ao menos não confundir soterramento de mineiro chileno com o de morador de Petrópolis.
Enfim, o ponto ao qual eu queria chegar é que hoje, na ausência do rolinho de jornal "dono da verdade" colocado ao pé da sua porta, me vejo tendo que abrir a página de algum portal e caçar notícias anteriores para saber dos ocorridos da última noite.
Sim, porque por exemplo, num fim de semana em que você acorda meio tarde e desplugado do mundo por algumas doses a mais de vodca ou saquê, invarialvelmente você vai chegar atrasado às notícias.
Por exemplo, hoje, quando acordei e quis saber da classificação ou não da seleção sub-20 às Olimpíadas - ok, ok, admito, é nerdice futebolística, só uso aqui a título de exemplo - já encontrei as notícias subsequentes, como a que diz que houve um flerte de um atleta canarinho com uma jornalista peruana.
Ou seja, a informação anda tão acelerada que, se antes a tv atropelava a mídia impressa, hoje a internet atropela e dá ré em cima da tv.
E eu, que vivo a caçar posts anteriores para entender um pouco do que se passa, admito que gostava daquele cheirinho de jornal recém-saído da gráfico, trazendo em suas páginas a verdade sacrilizada e imutável como testemunho único da noite anterior.
Mas nem por isso vou voltar a assinar um jornal de papel e tinta, daqueles que mancham as pontas dos dedos.
Além de tê-los disponíveis no trabalho assim que puser os pés no ambiente refrigerado do escritório, os periódicos de papel não passam da prova escrita de um tempo em que as notícias dispunham de um tempo razoável para sua completa digestão.
Hoje mal dá tempo de engolí-las, ou pelo contrário, são elas que nos engolem, a nós e ao nosso tempo.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

O mendigo do túnel



Toda noite, na minha volta para casa, passo pelo túnel Noite Ilustrada.
Ou melhor, passo pela casa do mendigo da curva.
Ele está sempre lá, deitado na estreita calçada que contorna o túnel.
Se a calçada já não é confortável para pedestres, imagine para o mendigo, que deita de lado, meio curvado e virado para a parede, com a cabeça quase sempre oculta entre panos imundos.
Passam-se os dias e como sempre o mendigo ali repousando, a impressão que me dá é de que ele nunca sai daquela posição simbiótica com o concreto frio.
Decerto aquele pedaço é apenas seu quarto, pois durante o dia deve sair para garantir seu sustento como pedinte, provavelmente não muito longe dali.
Não escrevo essas parcas linhas para me compadecer do mendigo nem culpar o status quo pelo seu infortúnio.
Meu índice de contribuição filantrópica anda quase a zero e por ora só tenho ajudado minha família, minha faxineira e os empregados do prédio.
É que sempre que vejo alguém que está apenas sobrevivendo, isso me faz indagar o que levou o indivíduo àquela situação.
E fico me perguntando se a pessoa simplesmente não pode ou não quer reagir à sua condição sub-humana.
Porque me faz lembrar de quantos mendigos espirituais andam vagando por aí como se a vida fosse uma sentença a cumprir e não uma dádiva.
Às vezes quero parar, conversar, tentar descobrir onde e quando o elo foi perdido, essa desconexão entre a rotina e os sonhos que nos alimentam pela vida.
Porque não consigo entender minha batalha como algo à parte dos planos, sonhos, esperanças.
Por isso, quando vejo os mendigos, tantos os do tipo sem-teto quanto os sem-sonho, dou graças a Deus que ainda aspiro.