quinta-feira, 30 de julho de 2009

Reputação

Que reputação você defende?
Você decerto é valorizado(a) por uma qualidade ou habilidade que o(a) distingue entre os seus pares, ou seja, a sua reputação.
Tem o intelectual que defende a reputação de inteligente.
A linda-maravilhosa que sustenta a fama de inatingível.
O brucutu que mantém sua fama de mau.
Uma reputação não é julgada por um código moral.
Uma reputação é boa ou má somente pelo grupo e o contexto cultural que a referenda.
Por exemplo, uma puta que tem boa reputação é que faz o "serviço completo" muito bem feito. Ao passo que isso passa a ser má reputação num convento.
Um assassino com boa reputação é o que não nunca deixou a mínima prova de seus crimes.
Assim como o político com boa reputação não é o bonzinho, mas o "esperto", que se equilibra na linha tênue entre malandragem e oportunismo.
Então, voltando à pergunta do começo, a que reputação você se aferra?
A melhor parte da reputação é que no momento seguinte você sempre pode contradizê-la.
É assim que volantes de contenção marcam gols.
É assim que padres fazem corar.
É assim que putas casam.
E aí, que reputação você vai perder hoje?

Vivi?

Li em algum lugar que na lápide de Pablo Neruda está gravado o epitáfio "Confesso que vivi", que intitula sua autobiografia.
Que invejável saideira, hein?
Fico imaginando que contabilidade o Neruda fez para chegar à conclusão de que fechou a conta de sua vida no azul. Decerto que para um artista, ter conseguido eternizar sua obra somou vários pontos para o famoso "valeu a pena". E para um poeta ter chegado à conclusão de que sua passagem por aqui foi gratificante, não deve ter-lhe faltado amor, paixão, amizade e até, por que não, sofrimento construtivo.
Agora, eu me pergunto, o que fará, eu e você, chegar à mesma feliz conclusão de Pablo Neruda?
Existe plano de vôo nessa vida que garanta o não arrependimento no juízo final?
Respostas, só no fim da linha.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Os clássicos

Lembro que quando eu trabalhava com o Heitor, que na época era redator publicitário e hoje é um famoso cineasta, ele me dizia que quem quisesse entender a alma humana, que lesse os clássicos.
Não sei se era coisa da cabeça dele ou citação, mas guardei o conselho.
Até ali eu não tinha lido muitos livros dos chamados clássicos. E desde então não acrescentei muitos títulos desse calibre ao meu repertório.
Mas o conselho do meu ex-colega voltou a tona agora que meu livro de cabeceira da vez é Crime e Castigo, de Dostoiévski.
Mal passei da metade do livro, mas já noto que, qualidade de tradução a parte, Dostoievski era um entendedor da alma humana acima da média.
Tanto que na contracapa dessa edição há uma citação de Nietzsche que diz "Dostoiévski é o único psicólogo que tem algo a me ensinar".
Quando se trata de descrever sutilezas do comportamento humano, dá para perceber que o gênio russo realmente entendia do riscado.
Eu, que atualmente estou fazendo a reforma de um apartamento, e vira e mexe me deparo com problemas relacionados ao microcosmo fofoqueiro e intrometido de um condomínio, bem que gostaria que o mundo fosse mais solidário, amoroso, compassivo. Mas dá para perceber que, assim como naquela fábula o escorpião não consegue negar sua natureza traiçoiera, muitos moradores de condomínio também não conseguem evitar sua tendência a hostilidade com os recém-chegados. Talvez por instinto de preservação, conservadorismo, sei lá. Mas não deixa de ser uma evidência de que a natureza humana é complexa, permeada de sentimentos nem um pouco nobres como inveja, rancor, ciúme e afins. Heitor estava certo, vou ler mais clássicos.

domingo, 26 de julho de 2009

Entre o Hoje e o Amanhã

O Amanhã encontrou o Hoje todo preguiçoso e foi tirar satisfação com ele.

- Escuta, Hoje, eu não aguento mais fazer as coisas que você não resolve. Não vê que eu estou sobrecarregado?
- A culpa não é minha, Amanhã. São as pessoas que tiram minhas tarefas e as passam para você. Apesar do ditado "Não deixe para amanhã...
- Eu sei, eu sei, mas a culpa também é sua. Por que você nunca se mostra mais disponível?
- Eu lá tenho culpa se as pessoas estão sempre ocupadas com o Urgente e se esquecem do Importante? Elas que deveriam ser mais seletivas.
- Mas é você, Hoje, que deveria passar mais tempo com o Importante do que com Urgente.
- É que o Urgente é mais prático, ele sempre diz o que eu tenho que fazer. Pagar contas, resolver o trabalho, malhar, comer. Já o Importante me exige mais, nunca vem com respostas prontas, sabe?
- Ô se sei. É o Importante que me sobrecarrega com tantas tarefas. Para mim ficam os amigos por reencontrar, a reviravolta profissional, os sonhos, as palavras não ditas ao ser amado, a gratidão aos pais, uma infinidade de tarefas adiadas.
- É muita coisa, né? Como diria aquele filme do 007, o Amanhã não é o bastante.
- Não seria "O Mundo não é o bastante"? Deixa pra lá, mas voltando ao meu problema, não tem como você passar mais tempo com o Importante?
- Está difícil, sabe? As pessoas andam histéricas, movidas pelo ponteiro do relógio. Elas estão vendendo o horário do almoço para comprar o horário do jantar.
- Eu sei, andam muito preocupadas com performance, sucesso. Tadinhas, algumas se esquecem até de comer.
- Eu até preferia ficar mais com o Prazer do que com o Urgente. O Prazer é divertido, me deixa letárgico, com ele até esqueço de você, Amanhã.
- Pois é, vê se me esquece. Faz de conta que o Amanhã não existe. Aliás, eu pertenço mesmo ao mundo do faz de conta.
- O problema é convencer as pessoas disso. Elas sempre contam com você, Amanhã. Por isso o primeiro passo não é dado, as palavras ficam presas na garganta, as passagens são sempre remarcadas.
- Nossa, Hoje, como você está poético.
- Eu sou poético. A expressão Carpe Diem foi inspirada em mim. Mas voltando ao seu problema, eu só vejo uma solução.
- Qual?
- A gente tem que matar a Esperança.
- Ma-mas, você testá me propondo um assassinato?
- Sim, a Esperança é traiçoeira. Ela dá ânimo as pessoas, deixa elas acreditarem que um dia poderão ser ou fazer aquilo que desejam, só que isso é balela, conversa para boi dormir. Mas no fundo a Esperança só serve ao conformismo, a igreja, ao governo, aos times de futebol. Apesar de dar conforto aos necessitados.
- Bom, então ela é do bem, não podemos matá-la. Não podemos matar o Comodismo e a Preguiça, por exemplo?
- Esses dão mais trabalho de matar e não resolvem nosso problema.
- Ok, então, matemos a Esperança. Aliás, não é ela que está passando ali.
- Sim, vou chamá-la. Psiu, Esperança, vem aqui.
- Oi, Hoje, oi, Amanhã. Vocês me chamaram?
- Ã-hã, tenho uma supresa para você.

Hoje e Amanhã agarraram Esperança pelo pescoço, que para variar, resistiu firmemente e não sucumbiu. Até que soaram as doze badaladas, o Hoje virou Amanhã, o Amanhã virou Hoje, e ambos se esqueceram do que faziam com as garras fincadas no pescoço da Esperança. Soltaram-na e Esperança pôde fugir para um lugar inalcançável. Provando que ela, a Esperança, é mesmo a última que morre.

Banheiros de empresa


Um ou outro funcionário eventualmente pode se queixar de uma sala apertada ou cadeira de encosto duro. Mas no quesito desconforto os banheiros de empresa são imbatíveis.
Não vou nem levar em conta a opinião das mulheres, já que não fiz pesquisa e pelo que sei, boa parte delas têm bloqueios com banheiros públicos.
Fazendo um retrospecto das empresas por que passei, os banheiros nunca foram feitos para o conforto de nenhum tipo de usuário.
Quem vai lá pela necessidade de um urgente número dois, encontra cabines apertadas, que se comunicam por vãos por baixo das divisórias. Para piorar a falta de privacidade, alguns pisos utilizados refletem o vulto dos usuários, um constrangimento. E por último, em geral as descargas não têm potência suficiente para despachar tudo num só fluxo, deixando provas do crime a deriva.
Pior situação encontra quem vai lá escovar os dentes. Logo após o almoço, há sempre mais usuários do que pias e forma-se uma fila irritante, o que faz alguns desistirem para retornar mais tarde. Outro motivo para dar meia volta é o sujeito encontrar o ar com qualidade irrespirável, claro, porque depois do almoço também é horário de pico para praticantes do número dois.
Banheiro de empresa só é tolerável para homens que entram para um rápido número um, porque caso o ar esteja carregado, eles podem apelar a apnéia para não respirá-lo.
Em resumo, banheiros de empresa não foram feitos para momentos de relaxamento enquanto você exerce seu direito universal de evacuar produto líquido ou sólido.
Faz sentido, pois se os funcionários são avaliados por sua produtividade, que interesse teriam as empresas em que você gaste preciosos minutos colocando em dia a leitura de um livro ou jornal usando o horário do expediente?
É mais justificável que você perca esse tempo na sua mesa, enrolando, paquerando no messenger, vendo bobagens do youtube ou mesmo cometendo grandes besteiras nas suas tarefas.
Ou seja, se numa empresa você for surpreendido fazendo uma cagada, quase sempre não vai ser daquele tipo em que é pego com as calças na mão.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Profissão assaltante


Assim como a engenharia, a medicina e a advocacia, o assalto já foi uma área profissional mais promissora do que é hoje.
Dizer "mãos ao alto" no ramo do assalto um dia foi tão glamouroso quanto "sua hora acabou" em psicanálise - se bem que pelo preço da consulta, psicanálise também poderia se encaixar em assalto.
Mas dentro da extensa área da criminalidade, assaltante é uma profissão cada vez menos procurada.
Poucos ainda sobrevivem daquela modalidade de assalto com arma de fogo ou branca em punho,apontada para a vítima. Outros tipos de assalto menos perigosos foram criados e tiveram boa aceitação.
Por exemplo, o valet-assalto. O assaltante espera pela vítima em frente a um bar ou balada, e sem usar armas, consegue levar seu carro e no mínimo 15 reais.
Tem o câmbio-assalto, onde o assaltante ou cambista rouba da vítima uma valor até dez vezes maior do que ela diz que tem.
E ainda o táxi-assalto, onde o assaltante te sequestra, fica dando voltas e só deixa você sair do carro depois de esvaziar seus bolsos.
Mas todos esses assaltos ainda são menos rentáveis do que outras ocupações dentro da área do crime, como a corrupção, o hackeamento, a lavagem de dinheiro e o estelionato, que inclusive já estão saturadas tamanha a procura pelos jovens.
A incidência de assaltos caiu a níveis preocupantes para autoridades e sindicatos. Afinal, sem os assaltos, o que será do mercado de armas, de seguros, de alarmes, de blindagem, de estacionamentos, de travas multi-lock, de condomínios-fortaleza?
E o que dizer dos professores do crime, que de uma hora para outra se veriam desempregados sem alunos para ensinar?
Sem falar na indústria de bolsas e carteiras, que perderiam o volume de reposição dos acessórios roubados.
A conclusão é que a profissão de assaltante precisa ser atualizada conforme as demandas do mundo moderno.
Caso contrário os assaltantes brasileiros perderão a reputação construída com tanto sacrifício, que um dia colocou o Brasil no topo do ranking mundial.
Corremos o risco de um dia sermos visto como um país que só forma profissionais de péssima qualificação e que não metem medo em ninguém, os chamados assaltantes de geladeira.

A falta que o pragmatismo me faz

Que saudade do tempo em que o mundo se dividia entre comunismo e capitalismo, esquerda e direita, palmeiras e corinthians, e outros antagonismos que inflamavam mesas de bar em discussões apaixonadas sem fim.
Nos tempos atuais, onde a lei de mercado sozinha manda mais que a constituição inteira, vivemos a chatíssima ditadura do Power Point.
Onde feeling, cultura, sensibilidade, tradição, caíram em desuso em favor da obediência cega a uma lógica tosca de A mais B, a uma cartilha de fluxograma.
E valores como originalidade, bom gosto, capricho, personalismo e até uma dose de "marvadeza" foram atropelados pela mesmice, pelo bom-mocismo, pelo mal acabado, pelo raso.
Fomos reduzidos a uma fábrica de idéias e comportamentos banais produzidos em grande escala em algum canto da China.
Bom, aconteceu, mas e o kiko?
O kiko é que seria melhor se eu fosse um pouco mais pragmático. Que meu nível de praticidade fosse além daquela cota mínima que me obriga a trabalhar direito para deixar as contas em dia.
Eu me encaixaria melhor nesse mundo e seria mais fácil ser feliz.
Mas não, eu tinha que nascer rocambolesco.
Eu tinha que puxar ao meu pai sonhador e não à minha mãe pé no chão.
Eu tinha que preferir ficção do que notícia.
Eu tinha que escolher pelo design e não pelo custo-benefício.
Eu tinha que gostar mais de puxar assunto do que puxar pelo braço.
Eu tinha que apreciar mais fotojornalismo do que foto da praia.
Eu tinha que exercer a sinceridade do que o puxa-saquismo.
Eu tinha que me habituar mais a pensar do que agir.
Eu tinha que "um monte de coisas", de pouca praticidade para a vida.
Sei que não estou sozinho nesse grupo reduzido de triatletas que nadam contra a corrente. Talvez você também esteja insistindo nessas braçadas de pouco rendimento.
Mas somos minoria e ser minoria dá mais trabalho.
Não dava para ter nascido menos "bichinha"?

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Confusão desnecessária


Não sei se acontece aí na sua cidade, mas aqui em São Paulo existe a mania de dar dois, às vezes três nomes para a mesma rua ou avenida. Por exemplo, depois do cruzamento com a Rebouças, a Avenida Brasil passa a se chamar Henrique Schaumann. A Avenida Ricardo Jafet vira Abrahão de Moraes. A certa altura, a Vergueiro vira Domingos de Moraes e depois Avenida Jabaquara. E por aí vai.
Se existe uma explicação técnica para isso, desculpe-me a ignorância.
Senão, fico me perguntando qual a razão disso, que acaba gerando uma baita confusão na hora de procurar um simples endereço no guia de ruas.
Será que ficaram com medo da numeração crescer a tal ponto de não caber mais nas placas? Tipo, Rua Vergueiro nº 1893128744641241281208120876187, e resolveram zerar a numeração trocando o nome da rua?
Será que o homenageado merecia uma rua com no máximo uns 2 km, mas a rua cresceu além da conta e a partir daí resolveram homenagear outro?
Ou o homenageado tinha um pseudônimo pelo qual era mais conhecido e aí resolveram colocar ambos, nome e codinome?
Será que uma avenida, a partir de determinado comprimento, passa a ser rodovia? E para evitar uma avenida no meio da cidade, resolveram terminar a rua e começar outra?
Será que a bipolaridade está tão na moda a ponto de atingir até as ruas?
Será que a prefeitura recebeu reclamação de moradores que moravam na mesma rua, mas pagavam IPTUs de valores completamente díspares?
Com tantos nomes de rua inventados e bizzaros por aí, falta de espaço para homenagear figurões é que não deve ser problema
Isso me fez lembrar que lá no Rio quiseram mudar a tradicional e nobre Vieira Souto para Antonio Carlos Jobim. Mas os cariocas, sensatamente, voltaram atrás.
Se fosse por aqui, provavelmente iriam dividir a rua ao meio e dar um nome diferente para cada metade.
Será que São Paulo faz isso só para manter sua fama de cidade caótica?

terça-feira, 21 de julho de 2009

De mal a pior


Qualquer estudante de psicologia sabe as consequências dos gestos dúbios para a educação infantil. Tipo, reprimir e afagar logo em seguida, deixando a criança sem saber se agiu bem ou mal. Pois eu fico me perguntando que exemplo é dado aos filhos da pátria mãe gentil quando papai Lula toma atitudes deliberadas como absolver Sarney e abraçar Collor como um velho compadre, publicamente. Vai mal nossa educação.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Jogar a toalha


No boxe, o gesto de jogar a toalha pela equipe de um pugilista sinaliza sua desistência, para evitar que o adversário faça um estrago maior com o lutador já massacrado.
Por simbolizar tão bem a desistência, jogar a toalha se tornou uma expressão muito comum no dia-a-dia.
Mas dizer que fulano jogou a toalha não significa que ele saiu, fumou um cigarro e retomou o que fazia.
Jogar a toalha é a desistência plena, na mais alta acepção da palavra.
Só quando tentou muito, persistiu, insistiu além do razoável, e no final não conseguiu sair do lugar, é que fulano tem o direito de jogar a toalha. Aquela toalha felpuda, agora encharcada pelo suor de tantas e tantas tentativas.
Jogar a toalha é o conforto dos derrotados que deram tudo pela vitória.
Dos que não se acovardaram e foram as últimas consequências para triunfar.
E que no final sucumbiram, dançaram, caíram do cavalo.
Mas, o que é mais importante, caíram de pé, sem arrependimentos.
Por isso jogar a toalha é também um gesto de glória.
A glória dos estafados, dos esgotados, dos acachapantemente humilhados.
Jogar a toalha é o superlativo de desistir.
É o desistir depois de várias desistências.
Poucas coisas dão tanto alívio quanto jogar a toalha.
Tentar, tentar, tentar e no final triunfar é o que todo mundo deseja, o êxtase.
Mas desistir depois de muitas tentativas também tem sua beleza.
Principalmente se você puder coroar sua derrota com um belo arremesso de toalha, com direção certeira ao centro do ringue.

domingo, 19 de julho de 2009

Contesto, logo existo

Falam que quanto mais sabemos, mais nos sentimos ignorantes. Faz sentido, principalmente numa época em que o conhecimento humano documentado duplica a cada cinco anos.Esse processo acelerado de reprodução de conhecimento chegou a gerar doenças modernas, como a ansiedade por informação de gente que não dá conta de ler e ver tudo a que se propõe.
Mas a meu ver, o maior problema (ou será solução?) de adquirir conhecimento é que ele nos leva a contestar a vida. Ele nos desperta do sono conformista para um estado de revisão de valores constante, e se você se permite esse conflito interno, babáu, pelo menos durante o processo de se conhecer - que aliás pode durar a vida toda - , adeus paz.
Por outro lado, uma vez que você se descobre um ser lúcido, tem a chance de juntar inteligência com conhecimento e transformar em sabedoria. E quem sabe viver acaba sofrendo menos por problemas que até parecem, mas de verdade não lhe dizem respeito.
No processo de se conhecer não há teoria ou tratado impresso que substitua a experiência, a prática. Mas algumas coisas que assisti, li e ouvi me ajudaram e continuam ajudando nesse processo.
Como diria aquele filme, temos um encontro marcado.
Como diria aquele livro, todos os homens são mortais.
Como diria aquela canção, é preciso saber viver.

Metalinguagem

- Que cara é essa aí? Tá viajando, mano?
- Não, tava aqui pensando no que eu vou ser quando crescer.
- E desde quando pobre como a gente tem direito de pensar nisso?
- Ah, sei lá, não dizem que sonhar não custa nada?
- Isso aí é letra de samba enredo, da Mangueira.
- Não, mané, é da Padre Miguel. Mas, pô, não desvia o assunto.
- Tá bom, então diz aí o que você quer ser.
- Cineasta.
- Cine, o quê?
- Ci-ne-as-ta.
- Ah tá, o tal que faz pesquisas.
- Não, mané, esse aí é o cientista. Eu tô falando do cara que faz cinema, filme, entendeu?
- Sei, mas isso dá dinheiro?
- Ô se dá, não conhece o Valti Salles?
- Valti Salles?
- É, o cara é cineasta e banqueiro, uma coisa leva a outra.
- Não entendi muito bem, mas ok, continua.
- Então, eu queria fazer um filme sobre a gente.
- Sobre a gente? Mas a gente não faz nada de interessante.
- Mas é sobre a nossa vida aqui na favela, nossos pobrema, nossas dificurdade.
- Só nessa frase aí tem dois problemas.
- Quê?
- Deixa pra lá.
- Mas voltando ao assunto, cê acha que rola de eu fazer um filme? Será que eu levo jeito?
- Bom, se for filme de sacanagem...
- Eu sinto como se tivesse a mão, o jeito, a sensibilidade atrás de lente para contar uma grande história.
- É, você é cheio de historinha mesmo, um caôzeiro da porra.
- Bom, aí eu teria que arrumar dinheiro, porque fazer filme é muito caro. E você podia ser meu assistente.
- Que assistente o quê. Já tá querendo me dar trabalho?
- Não, eu vou te dar a chance de brilhar ao meu lado. Vamos ficar famosos!!
- Quero minha parte em grana.
- Isso é um sim, topa fazer um filme comigo?
- Só se for como ator.
- Ator? Mas como, se você nunca fez nada no palco, na televisão?
- Mas tenho horas de experiência em frente a câmeras de vigilância. De condomínio, loja de conveniência, assalto a banco, ninguém fica tão a vontade ali como eu.
- Tá bom, tá bom, eu até arranjo uma ponta.
- Uma ponta? Eu vou me matar de trabalhar e você vai me pagar com uma ponta de baseado?
- Não, burro, ponta é um pequeno papel no filme.
- Não, não, eu quero o papel principal.
- Não, o papel principal vai ser o meu.
- Nana-nina. Ou eu faço o principal, ou tô fora.
- Tá bom, vai ter dois papéis principais, um para você, outro para mim.
- Combinado.
- Então vambora.
- Já?
- É, vamos captar recursos pra pagar o filme.
- Financiamento?
- Financiamento forçado: assalto a banco.
- Opa, minha especialidade.
- Mas não se esquece de colocar a meia na cabeça, hein, mané?
- Não vou usar não.
- Como assim?
- Agora que vou fazer cinema, quero exercitar mais meu olhar para as câmeras.
- Bom, cê que sabe. Mas vambora que o carro forte já deve estar descarregando o pagamento. Bora, Bené.
- Bora lá, Dadinho.
- Ê...vai começar?
- Brincadeira. Bora lá, Zé Pequeno.

O desencanto da expectativa


Se eu pudesse definir com uma expressão o que para mim significa amadurecer seria com esse título aí em cima.
Mas por que “desencanto da expectativa"?
Ora, simples, quando se tem vinte e poucos anos de vida e, como diriam nossos pais, a vida inteira pela frente, o que mais se tem é expectativa. Sobre carreira, sucesso, relacionamentos, casamento, filhos, enfim, uma promessa de vida sem tamanho.
Só que não acontece bem assim. Temos limitações, como por exemplo, as 24 horas de um dia. Outra limitação é o talento. Outra é a vocacão. Outra é a personalidade. E assim por diante.
O problema é que a expectativa é gerada por nossos desejos, que se não vierem acompanhados de boas condições para realizá-los, acabam numa grande frustração. Condições aqui envolvem ene fatores, inclusive a disposição em se gastar tempo e energia para realizar algo, que eu vou chamar de necessidade.
Sem necessidade não se chega a lugar nenhum, porque realmente nada vem de graça na vida, ou melhor, tudo tem um custo alto, que as vezes não enxergamos porque não estamos na pele da pessoa que alcança o sucesso.
Então, depois de tentar várias coisas na vida e não se alcançar nem metade, a gente pode achar que nossa trajetória foi um fracasso. Mas graças a Deus percebe que eram apenas desejos e não metas irrevogáveis.
Seria melhor que antes você tivesse feito um acordo com você mesmo: preciso disso mesmo ou é só uma frescura, uma busca da minha vaidade?
A gente economizaria um tempão se quando jovem se conhecesse melhor.
Mas ok, faz parte do processo tentar, errar muito até se encontrar.
Só não pode demorar uma eternidade para separar o joio do trigo.
Ainda bem que um dia vem esse tal de "desencanto de expectativa" e cai a ficha daquilo que se ouviu falar um dia: se você quer algo e ainda não alcançou, ou não é para você, ou não quer tanto assim, ou ainda não chegou ao final.

sábado, 18 de julho de 2009

Carne nova

Carne nova é como se designou chamar a pessoa que acabou de entrar para um grupo já formado, seja de trabalho, um clube, uma vizinhança, qualquer microcosmo equivalente.
A carne nova vem temperada com um encantamento que disfarçam seus possíveis defeitos e ressaltam suas qualidades, despertando a cobiça de seus caçadores e a inveja de outras caças de quem eles já enjoaram.
Basicamente são servidos três tipos de carne nova.
A carne nova sem nenhum sal.
A carne nova de primeira, saborosa no último, que de cara já faz salivar os carnívoros de platão.
E a carne nova de segunda, que precisa esperar o consumidor se fartar da de primeira qualidade, para então passar a ser apreciada.
Falemos dos dois últimos tipos.
A carne nova de primeira dispensa apresentações. Seria o equivalente a uma picanha, um filé mignon, um bife de ancho do melhor corte e preparado por um algum churrasqueiro phd lá de cima. É aquele espécime de gostosura unânime, que por sua raridade será disputada a tapas por seus potenciais consumidores. Mas como todo prato de matéria-prima nobre, será consumido por poucos escolhidos, em geral aqueles que já estão habituados a se fartar com iguarias equivalentes naquele ou em outros grupos.
Já a carne nova de segunda em geral é recebida com menos entusiasmo. Equivale a carnes menos nobres mas igualmente apreciadas, com mais adeptos devido a sua maior acessibilidade, como a alcatra, o colchão duro, o contra-filé.
O interessante a observar na relação entre carne nova de primeira e de segunda, é que a primeira, se não for logo consumida, tende a esfriar e perder sua atratividade.
Exatamente o contrário do que acontece com a carne nova de segunda.
Porque ao não despertar a cobiça inicial como faz a carne de primeira, a carne de segunda espera pacientemente sua vez de ser consumida, pois sabe que por melhor que seja o caviar, uma hora ele enjoa.
Então, como num golpe de mestre, a carne de segunda acaba sobrepujando a de primeira em preferência, principalmente a dos mais chegados a um bom contra-filé com fritas.
Porque mais vale uma carne de segunda servida abundantemente do que lascas de filé mignon de nouvelle cuisine, que não chegam a preencher o buraco do seu dente.
Resumindo, há procura para todo tipo de carne, mas no dia-a-dia o que faz mais sucesso mesmo ainda é quem prepara um ótimo arroz com feijão.

Por que escrevo?

Escrevo porque me reconheço no espelho fosco de uma página em branco.
Escrevo porque meus dedos são as terminações nervosas do meu cérebro e coração.
Escrevo pelo mistério.
Escrevo pelo milagre de vinte e três palavras intercaladas conseguirem dizer tanto.
Escrevo em humilde homenagem aos autores geniais.
Escrevo porque comecei e peguei gosto.
Escrevo porque peguei gosto e viciei.
Escrevo para desaguar uma voz surda.
Escrevo para vomitar um desabafo.
Escrevo para iluminar a penumbra do silêncio.
Escrevo para exorcizar minha raiva e inconformismo.
Escrevo para lançar no mar recados engarrafados.
Escrevo porque não é sensato.
Escrevo porque faz todo o sentido.
Escrevo porque perdi a espontaneidade da fala.
Escrevo para teclar em minhas feridas.
Escrevo para me indignar.
Escrevo para perder o medo de ser piegas.
Escrevo para fazer côro aos corajosos.
Escrevo.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Por um triz


Quem já foi a Buenos Aires pode supor que a Argentina, em algum momento, já foi ou esteve para ser um país de primeiro mundo. É um pouco de exagero dizer que trata-se de um pedaço da Europa na América do Sul, como gostam de apregoar os argentinos mais ufanistas.
Mas com seus belos edifícios e monumentos projetados por arquitetos importados do velho mundo, não há como negar que Buenos Aires é uma baita cidade. Por lá tudo é muito civilizado. Por conta do apetite voraz do leitor portenho, encontram-se livrarias imensas e fartas em títulos - dizem que é ponto de encontro de jovens argentinos. A tradição européia cultivou o hábito de frequentar cafés e Buenos Aires dispõe de alguns com mais de cem anos de existência. Existem regiões com vocação turística, como a Recoleta e o Caminito. E como não podia faltar a uma cidade "européia", a feira de antiguidades aos domingos, em Santelmo.
Não à toa, Buenos Aires já contabilizou mais turistas num ano do que em todo o Brasil.
Hoje, dia em que o time do Estudiantes tirou a mãozinha da taça da Copa Libertadores que os cruzeirenses já contavam como certa, eu me pego indagando: por que é que os argentinos, com tudo a seu favor, ainda não estão no primeiro time dos países?
Ok, não sou economista e conheço pouco da história política argentina para tecer uma teoria a respeito. Sei que, como aqui, sobreviveram a uma ditadura militar - a mais impiedosa da América do Sul - e já na fase democrática, caíram nas mãos de políticos igualmente corruptos.
Mas, for god‘s sake, eles têm terras férteis, indústria, turismo desenvolvido e, o item mais importante, um povo educado e com um forte sentimento de nação. E pra ajudar, eles não comemoram uma semana do tango, ou seja, o ano deles não começa depois do carnaval como o nosso. Então por que é que não vingam?
Era de se esperar que no mínimo se equiparassem a uma Holanda, uma Áustria, em distribuição de renda e qualidade de vida.
Mas tem-se a impressão de que a Argentina está sempre batendo na trave do mundo desenvolvido.
Parece até que o tango foi inventado para fazer coro ao temperamento melancólico e auto-piedoso do argentino, em especial do povo de Buenos Aires, cidade que dizem concentrar a maior relação de psicanalistas por habitante de todo o planeta.
Se a Argentina não chegou lá ainda, não é por falta de garra, de espírito de luta, de inconformismo. Isso, como demonstram os times deles na Libertadores e as mães da Plaza de Mayo, para eles nunca há de faltar.
Suspeito que no campo político e econômico, os argentinos já teriam jogado a toalha. E assumido sua verdadeira vocação: a de nostálgicos a lamentar o grande país que poderiam ter sido.

Fidelidade


Quando ela pediu que ele abandonasse seu emprego, porque não tinha nada a ver com ele e os afastava, ele concordou.
Daí ela pediu que eles passassem mais fins de semana na praia, nas cachoeiras, porque estava sentindo falta de contato com a natureza. Ele concordou.
Então ela sugeriu que ele se divertisse mais, que não levasse a vida tão a sério, para o seu próprio bem. Ele assentiu.
Até disse para ele relaxar sua dieta, que se permitisse mais coisinhas saborosas. Ele, claro, adorou a idéia.
Mas cima de tudo, ela pediu que ele fosse fiel, sempre fiel a ela.
Que fosse sempre sincero, íntegro, cúmplice dela.
E que jamais a traísse.
Ele prometeu, sabendo que sem ela sua vida poderia desandar, sair do prumo, pois ela sempre fora seu guia, sua bússola, sua tábua de salvação.
E quando ela disse para ele ir atrás daquela mulher que cruzou seu caminho, e que o fizesse apaixonadamente e com total desapego, ele nem titubeou.
Afinal, a vontade era dela, ela quem mais uma vez mandava ele perseguir seu destino.
E sempre que ele a ouviu, ela, sua alma de criança, deu tudo muito certo.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Minhas férias na fazenda


Querida professora,

Minhas últimas férias na fazenda do meu avô foram muito, muito legais.
Quando cheguei lá a vovó logo falou para eu pedir ao caseiro que pegasse duas galinhas para fazer uma canja. A vovó não sabe que eu mesmo segurei as duas pelo pescoço, dei uma torcidinha e depois deixei as duas em cima da pia.
No dia seguinte o caseiro e o seu cachorro, o Urso, foram comigo levar as ovelhas para pastar. Uma delas ficou presa no arame farpado e o caseiro foi buscar uma espingarda para sacrificá-la. Mas nem precisou porque antes que ele voltasse, enforquei a coitadinha com um pedaço do arame.
O terceiro dia foi ainda melhor. Eu e o vovô pegamos um bote na beira do lago e fomos pescar lá no meião. Uma capivara passou nadando ao lado do barquinho e sem que o vovô visse, pequei um toco bem grande no bote e dei com toda a força na cabeça da capivara, que afundou na hora. O vovó me deu uma bronca porque tava espantando os peixes.
No dia seguinte, vovó quis me ensinar a ordenhar a vaca. Ela me fez pegar nas tetas da Mimosa e apertar com força para fazer jorrar o leite. Só que eu escondi uma tachinha na palma da mão e apertei bem forte, fazendo a coitada sair em disparada. Ela correu tanto que atravessou a cerca e foi atropelada na estrada por uma carreta.
No quinto e último dia, eu e o vovô saímos para um passeio a cavalo. Lá no alto do morro, o vovô pediu para eu esperar que ia consertar uma cerca. Quando eu fui desmontar, o meu cavalo tentou me morder. Fiquei com tanta raiva que puxei o cavalo para o barranco e ele acabou caindo e morrendo.
Viu como foram emocionantes as minhas férias, professora? Eu até trouxe de lembrança uma machadinha que encontrei no paiol, quer ver? É só se virar que eu mostro, tô aqui bem atrás da senhora.

Do seu querido aluno, Jason

Ode a vida


Me lembrei do filme Blade Runner no momento em que o andróide representado pelo ator Rutger Hauer salva seu algoz Harrison Ford de cair de um prédio, mesmo sabendo que este veio com a missão de matá-lo. Linda cena de homenagem a vida.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Mania de listas

Você já deve ter percebido como o ser humano adora uma lista dos dez mais, dez menos, top isso, top aquilo. Hoje mesmo tava vendo na banca a capa de uma revista que trazia os cem melhores livros de literatura brasileira. Ok, um pouco de orientação para leigos vai bem, mas há limites.
Porque a história de classificar , dar notas, fazer um ranking virou um modismo tal que parece que ninguém mais consegue dar uma opinião que não seja endossada por uma publicação dessas. E tem muita balela. Com que base, por exemplo, alguém pode afirmar que fulana é a mulher mais sexy do planeta? Ou que sicrano é um dos mais desejados? Bom, a gente sabe que essas classificações têm mais a ver com a popularidade do artista naquele momento. Mas a mídia tenta fazer acreditar que são de fato os mais lindos e lindas do mundo. E dá-lhe comprar revistas e guias.
Mas os rankings não se restringem aos melhores artistas, restaurantes, funcionário do mês, os mais vendidos de Veja. Antes fosse. Hoje em dia, seja pelo excesso de opções, seja pela falta de opinião própria, muita gente acaba deixando para uma dessas listas escolher tudo quanto é produto. Basta entrar em site de compras para encontrar aquelas classificações que vão de uma a cinco estrelas. O problema é que essas notas são, quase sempre, a média de umas três ou quatro opiniões, nem sempre confiáveis. Se você vai comprar um carro, é a mesma coisa. Alguém vai dizer que determinado modelo é a compra do ano da revista X. Ou que tem melhor custo-benefício de acordo com jornal Y. E por aí vai: tal CD é o mais vendido nos EUA, aquela eletrônico é o mais popular no Japão, o vinho "sei lá o quê" é o melhor do mundo. Ai de você se der uma opinião oposta a maioria. No mínimo vão te acusar de ser do contra, se bobear até esnobe.
Porque não dá mais para gostar pura e simplesmente. É a cultura do só se gostar do melhor ou as vezes, do pior. O médio nem é citado. O que não condiz com a realidade, porque na média a vida é isso mesmo, média. A mediocridade é o normal. Nossos dias são na maioria médios.
Aliás, é a dificuldade em aceitar o médio de bom grado que dificulta nossas vidas. Queremos sempre do melhor e do excelente. Por isso quem não é número um acaba sofrendo com cobranças, em especial aqui no Brasil. Daí o calvário de um Rubinho Barrichello, de uma seleção brasileira vice-campeã, de um Gustavo Kuerten decadente. Se não é o melhor, não se é nada.
Dá até para entender a psicologia. Porque se não há chance de ser o melhor, então nem vale a pena tentar ser o número vinte.
Pena.
Porque um país melhor depende de mais gente que queira ser número vinte, oitenta, cem. Não de quem só aceita ser o número um e não conseguindo, desiste. Mas de quem se esforça para ser o melhor que consegue e assim dá sua contribuição para o conjunto da obra.
A vida também é assim. A gente tem mais chance de ser feliz se, tentando o máximo que se pode, fica feliz com o melhor que se consegue.

domingo, 12 de julho de 2009

Disciplina

Disciplina, Plina para os íntimos, era como o próprio nome define, uma garota certinha.
Em casa se educara sob a mais rígida cartilha, com regras, comportamentos e valores duros e inflexíveis, como um código penal verbal passado de pais para filha.
Por conta disso, Plina não se encaixava com as outras crianças, sejam os parentes, os vizinhos ou os colegas de escola. Sempre que alguém saía do combinado, Plina abandonava a brincadeira ou o passeio ou o trabalho em grupo em que estava metida.
Com essa postura ela ganhava pontos com seus pais, que se enchiam de orgulho mas não premiavam a garota, temendo que ela, a Disciplina, perdesse a si mesma.
E assim Disciplina foi crescendo e cada vez mais se isolando, tornando-se a princípio triste e depois amargurada.Seus pais ignoravam seu sofrimento, culpando o mundo e o jeitinho brasileiro por não se encaixarem ao seu ponto de vista.
Mas quando Disciplina chegou a adolescência, a amargura inevitavelmente tornou-se revolta. As regras sucumbiram a ebulição dos hormônios, e Plina se viu obcecada em quebrar seu código de rigidez, flertando com o perigo.
Passou a faltar ao colégio, comprar gabaritos de provas, se arriscar em rachas e aventuras perigosas com os colegas que antes eram sua antítese.
Teve seguidos casos amorosos com os tipos mais excêntricos e acabou ficando justo com o traficante da escola. Claro, experimentou todo tipo de droga.
Em casa os pais se sentiam fracassados, pois toda a vigilância acabou sendo insuficiente para afastar Disciplina do seu desvario. Disciplina mal voltava para casa, fazendo seu pai sair a esmo para procurá-la já tarde da noite, quase sempre sem sucesso.
Até o dia em que Disciplina, ao cair da garupa da moto de seu amado, foi abandonada por este, temendo ser pego pela polícia.
Já com os sentidos recobrados no hospital, um filme passou pela cabeça de Plina, com todo o flash-back dos últimos meses vividos. A corda havia esticado ao máximo, mas felizmente não se arrebentara.
Depois de um curto período se recuperação em casa, a garota voltou a sorrir, fazendo seus pais pensarem que tinham Disciplina de volta.
Mas ao se levantar da cama, Plina já tinha uma decisão tomada. Sacou sua poupança, vendeu os brincos que ganhara nos seus 15 anos, pegou algumas roupas e colocou tudo numa mochila. O único peso que ela aceitaria carregar de agora em diante.

sábado, 11 de julho de 2009

Relação de amor, sem ódio.


Outro dia estava trafegando de madrugada pela Av 23 de maio quase vazia e fiz um exercício de percepção.
Tentei ver São Paulo com os olhos de um turista recém-chegado de Guarulhos e pela primeira vez na cidade. Puxei pela memória minhas sensações de turista calouro em outras capitais e fiz um paralelo com aquele momento.
Não é que São Paulo me pareceu melhor que a encomenda de motoboy?
Ok, São Paulo, com sua urbanização caótica, praticamente sem horizontes, está longe de ser bonita - se bem que o centro, com sua eterna promessa de restauração e modernização, um dia irá vingar seus detratores.
Mas temos que analisar São Paulo pelo que ela é, uma cidade de vocação noturna.
E por esse ângulo a enxergo como uma Raimunda, feinha porém gostosona. E cujos enormes defeitos, sob a luz enganosa de postes de luz amarela, até perdôo.
De noite São Paulo revela qualidades que o insufilm não deixa a gente perceber de dia.
Lá pelas 10, o trânsito mais ameno começa a dar espaço para bares, restaurantes, baladas, cinemas, teatros, bancas e lanchonetes 24 horas. Cantinhos que se a gente não frequenta todo dia, pelo menos se acostumou a ter sempre disponíveis.
Isso de segunda a segunda, porque aqui tem público para tudo todos os dias.
O que ajuda cada um a encontrar seus iguais numa das maiores democracias de mesas de bar do planeta.
Mesmo quando fico em casa, raramente durmo cedo. Gosto de ler um livro ou ver um filme com os ruídos da cidade fazendo sonoplastia ao fundo.
Apesar de ter passado perrengues por aqui - assalto a mão armada e furto de carro,inclusive - não me sinto vítima de São Paulo. Pelo contrário, sou agradecido pelas adversidades e oportunidades que me foram oferecidas. Porque, como diriam os amigos, se a gente aprende a se virar em São Paulo,com exceção talvez de Cabul e da Faixa de Gaza, fica descolado em qualquer lugar do mundo.
Então, se essa cidade-raimunda continua piscando para mim todas as noites, não tenho como recusar. Nem reclamar.

A romaria eletrônica


Eu já tinha ido a Santa Efigênia, não lembro quando e nem para quê.
Não sendo fã de eletrônicos, minha curiosidade em pôr os pés ali de novo era tão pequena quando da vez de estréia. Fui, debaixo de uma chuva chatíssima, porque me obriguei a pesquisar equipamentos mais em conta para montar um home theater - bem, qualidade de imagem e som para ver meus filminhos eu prezo.
Para quem não é de São Paulo, a Santa Efigênia é a rua dos equipamentos elétricos e eletrônicos. Tem de tudo, desde lâmpadas até equipamentos profissionais de som, passando por instrumentos musicais, computadores, videogames, softwares, etc.
A Sta Efigênia está para os eletrônicos assim como a Rebouças está para lojas de noivas, Teodoro está para móveis, Duque de Caxias está para auto-peças, entre muitas outras ruas temáticas de comércio que São Paulo coleciona.
Hoje tive uma pequena amostra do fascínio que eletrônicos exercem sobre o cidadão comum. Não fosse assim, não haveria uma enxurrada de ofertas tão grande quanto a enxurrada de água que corria aos nossos pés.
A Santa Efigênia é o baixo meretrício dos tarados por gadgets.
Se eu gostasse mais de eletrônicos, essa minha epopéia pela Santa Efigênia teria rendido mais do que roupas encharcadas e alguns pedaços de papel com cotações de preço anotadas.
Mas não deixou de ser, digamos, uma experiência antropológica interessante.
Soube, por exemplo, que 60% dos clientes de uma loja de som profissional eram igrejas, mostrando que a fé está falando e cantando mais alto nos altares do que bandas nos palcos.
E a julgar pelo movimento intenso apesar do pé d´água que caía, os Mamomas estavam certos, a felicidade do povo é mesmo um crediário nas Casas Bahia. Estão aí os devotos de Santa Efigênia que não me deixam mentir.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Batalhas


Você gosta de filmes de batalhas? Então somos dois.
Filmes de batalhas me atraem por elas mesmo, as batalhas.
Se forem batalhas antigas, sem multiplicação de exércitos por efeito de computador, melhor ainda.
Adoro "Spartacus".
Amo "El Cid". Também por causa da aparição da jovem Sophia Loren - demais, é de colocar qualquer sexy symbol hollywoodiana de hoje no chinelo.
O realismo da introdução de Resgate de Soldado Ryan também é de arrepiar.
As vezes pego Gladiador começado e fico com raiva de ter perdido a batalha inicial, com os romanos atacando os germânicos com bolas de fogo, lançadas por catapultas.
Até reprise de Tróia me prende, pela mística do cavalo oco.
E já que estamos falando de batalhas, por que não falar em "Sete homens e um destino"? Ou de "Os sete samurais", do qual foi adaptado?
São tantos e tão bons filmes de batalha que fico me perguntando se é a violência o que mais me atrai neles. Mas é mais do que isso.
É a estratégia militar, a bravura, a crueza da luta corpo a corpo, o canto dos cisnes de milhares de vidas.
Nossas "batalhas do dia-a-dia", guardadas as proporções, também são difíceis, bonitas e recheadas de sentido.
Mas em matéria de coragem, não chegam nem perto de empunhar espada e escudo para encarar a morte de frente, sentindo o golpe do inimigo na carne, como faziam romanos, gregos, mongóis, persas e tantos outros povos de antigamente.

A falta de assunto

Do latim bobagenes escassus, a falta de assunto é um mal que acomete dez entre dez pessoas que tentam escrever algo, que pode ser um livro, um roteiro, um poema, um artigo de revista, um post de blog chumbrega. Ou simplesmente, quem só quer manter uma hora de conversa regada a chopp num bar qualquer.
Uma pessoa pode pegar a falta de assunto de diversas maneiras.
Uma delas é a congênita, caso em que os pais não estimulam na criança a curiosidade por conhecimento, seja ele vindo de livros, filmes, música, internet, revistas pornográficas, folheto imobiliário, o que for.
Outra causa é o excesso de rotina, que faz a pessoa repetir os assuntos até esgotá-los, numa espécie de dia da marmota infinito.
Uma terceira causa da falta de assunto seria o enclausuramento do indivíduo em sua tribo, o que naturalmente faz com que ele restrinja sua conversa ao papo do grupo. Por exemplo, publicitários falando de anúncios, arquitetos falando de lambris, dentistas debatendo as novidades em aparelhos corretivos.
Mais uma causa de falta de assunto seria o assunto em si não se renovar. Por exemplo, corrupção no Brasil,escândalos da Britney Spears, invasões americanas em países de terceiro mundo, novela das oito e por aí vai.
Da falta de assunto advém outros males que vitimizam o homem moderno.
Por exemplo, a mudez de elevador, onde no máximo o indivíduo consegue dissertar sobre meteorologia ou os resultados da noite passada do campeonato.
Mas um mal tão comum quanto a falta de asssunto é o excesso de assunto, do latim semancolis ausentis.
O excesso de assunto tem a particularidade de vitimar não o hospedeiro do mal em si, mas quem está ao seu lado.
Num vôo, por exemplo, um indivíduo com excesso de assunto jamais deixará a pessoa da poltrona ao lado dormir.
Numa palestra, ele invariavelmente esticará a permanência do palestrante e da platéia além da conta, pois ao final não deixará de fazer sua perguntinha retórica e sem nexo.
Os assunteiros de plantão detestam situações que coíbem sua livre expressão, como velórios, cinemas (onde quase sempre eles são censurados com aquele merecido "shhhh!!!") ou primeira visita aos pais da namorada. Ou, como é mais comum, nem percebem que deveriam se conter nesses recintos.
Aliás, o sonho de quem sofre de excesso de assunto é virar dentista: só ele fala e o outro responde no máximo com grunhidos.
Mas não pensem que a falta de assunto é menos danosa do que o excesso.
Por exemplo, tem blogueiro por aqui - he,he,he - escrevendo qualquer merda só para não deixar de escrever, por falta de assunto.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Regresso

Por pouco Roberta não passou batida pela antiga entrada da cidade, a placa de bem-vindo estava com suas letras pintadas desgastadas, quase ilegíveis. A nova entrada ficava logo adiante e era marcada por um pórtico brega, naquele estilo indefinível que os arquitetos chamam de neoclássico. Mas Roberta fez questão de pegar a entrada velha, que conservava a estradinha de paralepípedos da sua infância. Em 50 anos, pouco mudara. Reconhecia algumas árvores centenárias e na praça principal o coreto ainda parecia pulsar com batidas de surdo e toques de metais. Depois que se mudou com sua família para o exterior, as lembranças de Rosalina foram se diluindo até virar uma tela em branco, que agora ela reconstituía com todas as cores do passado. Se alojou na pensão de Ermínia, agora tocada por sua filha pois a mãe falecera há bons anos. Mal colocou as malas no quarto, vestiu-se despojadamente e saiu andando sem rumo, debruçando seu olhar em cada metro quadrado. Em três dias de peregrinação, passou pelos botequins, nas casas dos amigos da família, conversou com quem estava sentado nas praças. Soube de quem morrera, de quem casara e tivera filhos, de quem como ela havia saído da cidade sem deixar rastro. E claro, foi até sua antiga casa, agora ocupada por um orfanato dirigida por freiras. Qual não foi sua surpresa quando encontrou a admnistradora da entidade, a irmã Paula. Paula, sua grande amiga do colégio, a mais bela e sedutora da escola, talvez da cidade. Conversaram longamente, Roberta contou sobre sua carreira de correspondente internacional de televisão. Paula confessou resignada que depois de desventuras amorosas, encontrara enfim as paz nos braços do Senhor. Despediram-se, Roberta tomou o rumo da pensão, onde suas malas já a esperavam na recepção. Carregou o jipe, abraçou a filha de Ermínia e seguiu seu rumo de volta a São Paulo. Na saída de Rosalina, olhou de relance a velha placa de entrada, agora pelo verso, e imediatamente encostou o carro. Chegou perto para ver, ainda legível, algo escrito nas costas da placa: seu nome grafado com letra de criança, datado de meio século atrás. Com a chave do carro, voltou a riscar seu nome embaixo com a nova data ao lado, agora numa orgulhosa grafia de adulto. Com duas datas sobrepostas, a placa virou uma lápide, a enterrar seu último dia na cidade natal. Roberta então sentou-se ao volante e foi embora sorridente, já pensando na netinha que a esperava a milhares de quilômetros dali.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

O homem a serviço da tecnologia


Aquele chavão que não sei se um dia foi assinatura de produto, "Tecnologia a serviço do homem", nem sempre condisse com a realidade. Tá certo que a máquina de lavar roupa substitui com méritos a esfregação de roupa no tanque. Mas por outro lado a tecnologia também age como vilão oculto da história. Pense bem, antes do celular você podia sair por aí livremente sem ser pentelhado(a) por um chefe workaholic ou namorado(a) hiper-ciumento(a). O forno de microondas só fez mudar sua dieta para pior. Primeiro a tv, depois o computador, deixaram você mais preguiçoso para o contato pessoal, de carne e osso. O piloto-automático do avião tirou a autonomia do comandante e expôs a vulnerabilidade da aeronave. Então, será que o homem também não se tornou uma espécie de cobaia da tecnologia? Não dá para separar o avanço da tecnologia da necessidade de vender produtos, são coisas que se confundem. Então, ao mesmo tempo que pretensamente supre necessidades humanas, a tecnologia também as cria. Só que a velocidade de criação de novas tecnologias é sempre menor do que a urgência de vender, forçando a indústria a criar produtos de baixa durabilidade para manter o nível de consumo. Um caso onde a tecnologia, não conseguindo acompanhar a avidez por novidades, joga contra o seu bolso e a natureza. Nessa discussão de quem serve quem, o exemplo mais elucidativo é o dos robôs, que supostamente aumentaram a produtividade nas fábrica mas eliminaram empregos. Logo a tecnologia estaria por um lado, a serviço dos empresários e por outro, contra os empregados. Ou seja, tecnologia a serviço do homem para alguns e deserviço para muitos.

terça-feira, 7 de julho de 2009

O aristocraque



Ernesto Alvarenga Albuquerque Andrade de Orleans e Bragança III logo enxergou em seu rebento recém-nascido a aura de craque. Fechou os olhos e viu o pequeno Juninho em sua primeira montaria, um pônei, empunhando o taco como uma extensão de seu bracinho e conduzindo a bola sobre o gramado com maestria precoce.
Foram três anos de expectativa e muitas cavalgadas na sela com o pai, até o dia em que Ernestinho adentrou pela primeira vez o clube de pólo para seu batismo de fogo. E quando a bola escapuliu do jogo e veio de encontro a Juninho já de taco na mão, o mundo presenciou o surgimento de um gênio. Sob olhar estupefato e decepcionado de Ernestão, seu filho desmontou o puro sangue ganho de presente naquele dia, largou o taco, levantou a bolinha de pólo com os pés e emendou uma sequencia de embaixadas com direito a paradinha na nuca, com um talento quase extraterrestre.
Os cavalos estacaram para que os cavaleiros saudassem o novo mini-craque do futebol, pela primeira vez egresso da mais alta aristocracia.
O pai caiu num desgosto profundo. Amaldiçou e açoitou o cavalo, mandando o peão da fazenda dar cabo dele.
Esperançoso de reverter a situação, Ernesto afastou o garotinho de qualquer contato com o esporte bretão. Não permitia a entrada de bolas em casa, bloqueou os canais de futebol na tv, entre outras medidas preventivas. Mas a proibição surtiu efeito oposto, pois o menino improvisava uma bola com qualquer objeto, lapidando ainda mais sua habilidade.
Inevitavelmente um olheiro acabou descobrindo e levando Ernestinho para um grande time, depois que este chorou um mês seguido, vencendo a esperança do pai de vê-lo pelo menos como um médico respeitado.
Por sua origem aristocrática, Ernestinho foi um jogador atípico. Convencido a adotar um apelido, não aceitou o "Netinho" sugerido e acabou ficando com um mezzo gringo, mezzo brega codinome "Ernest".
Ernest não se misturava, pois tinha hábitos e gostos completamente avessos aos dos outros jogadores. Em vez de pagode, música clássica. No lugar de truco, gamão. Em vez de loiras falsas do funk, austríacas da valsa.
Na concentração fazia questão de ficar na suíte presidencial e viajava sozinho em sua limusine, com a sensação de que o ônibus do time fazia sua escolta.
Mas fazer o quê, Ernest comia a bola. Ou melhor, degustava, como convém aos cavalheiros de boa estirpe. Tanto que chegou a ser cogitado para jogar no Milan e na Inter, mas como nobre bem-nascido, preferiu o Real.
Quando foi convocado para a Copa, o mundo viu o rapaz aristocrata envergar o manto verde-amarelo como a capa de um rei.
Na decisão, todo o talento de Ernest não impediu que o time chegasse aos minutos derradeiros em desvantagem no placar. Mas para variar sua estrela brilhou quando cruzou a boa na área e o juiz apitou penalti num toque de mão inexistente.
Ernest ajeitou a bola, a gola da camisa de linho, as meias de seda, o calção e partiu para um chute seco e elegante, de bico fino. Tão compenetrado estava que não notou a entrada em campo de um cavalo desgovernando montado por um policial, que fazia a segurança da beira do gramado.
A bola foi defendida pelo cavalo quando este passava na frente do gol, e o juiz deu prosseguimento ao jogo, até o apito final e comemoração de título pelos alemães. Ernest virou bode expiatório, execrado naquele replay de maracanaço que colocou o estádio de luto.
O aristocraque nem notou o olhar satisfeito e vingado do mesmo cavalo que foi trocado por uma bola naquele fatídico debut no campo de pólo.

domingo, 5 de julho de 2009

Morte e vida bovina

No corredor da morte do matadouro, a vaca magra encontra a vaca gorda. As duas lamentam os últimos momentos de suas vidas:

- E aí, vaca magra, nervosa?
- Não, vaca gorda, nesse calor de 40 graus eu tô tremendo é de frio. Tsc,tsc...não tá vendo que tô me cagando toda?
- Isso eu tô vendo. Mas calma, eles usam aquela injeção na nuca. Você não vai sentir nada.
- Não tô triste pela morte, mas pelo filme que está passando na minha cabeça.
- Que filme? Touro indomável?
- As coisas que deixei de fazer nessa vida.
- Que coisas? No pasto só dava para comer, defecar e transar com os touros.
- Tipo o regime pra manter esse corpinho em forma. O que evitei de capim manteiga...
- Putz, lembrei que eles nem deixaram a gente escolher a última refeição. Aquela ração tava horrível, eca!!
- Você pelo menos comeu tudo o que sempre quis.
- É, mas em compensação você teve uma carreira maravilhosa nas passarelas dos leilões, capas da revista Balde Branco, campanhas contra a febre aftosa...
- Mas e o sacrifício que fiz? Nem um filho eu tive...
- É, mas eu tive oito e olha o estado das minhas tetas.
- Por conta de não querer bezerros, afastei todos os touros da minha vida.
- E você era a mais desejada.
- Pois é, e pensar que depois que terminei com o Brutus, ele foi morrer naquela arena de touradas de Sevilha...ah, me dá vontade de morrer também.
- Seu desejo vai ser atendido em poucos minutos, hehehe.
- Engraçadinha.
- Mas veja pelo lado bom, você namorou com os touros mais desejados do pasto. Eu, eles só queriam por uma noite e depois me abandonavam e nem assumiram seus filhos.
- Nenhum deles foi um grande amor. Eu era uma espécie da troféu para eles, entende?
- Bom, mas agora não adianta mais se lamentar. Olha ali o homem da injeção.
- Será que a grama lá do céu é mais verde?
- Depois das acusações de acabar com a camada de ozônio, você acha que vamos pro céu?
- Bom, agora tô cagando pra isso.
- Pra variar. Mas como último desejo, permita-me um último trocadilho?
- Vai, vai.
- O tempo das vacas magras e vacas gordas acabou.
- Nossa...perdeu sua chance de entrar para o céu.

Foi assim que a vaca gorda e a vaca magra deram adeus a vida no pasto. A vaca gorda pelo menos pôde se orgulhar de ser servida no Fogo de Chão. Já a vaca magra teve mais um desgosto, ao terminar confundida com carne de gato, em espetinhos de porta de estádio.
Moral da história: beleza não põe mesa de rodízio.




P.S.: Esta história foi inspirada num papo com meu amigo Rodrigo Strozemberg, se não me engano, antes de provar vacas gordas lá no - nham, nham - Rincon de Buenos Aires. Valeu, Strozinho!!!

sábado, 4 de julho de 2009

Lembrete

O tempo é um fio
bastante frágil.
Um fio fino
que à toa escapa.

Extraído de "O tempo é um fio", de Henriqueta Lisboa

Jeri, te revejo daqui a pouco


Não há publicitário que um dia não tenha pensado num plano B - leia-se, plano de fuga - para sua vida. Muitos já estão pensando no C, D, tamanha a necessidade de escapar dos presídios de regime semi-aberto em que se tornaram as agências - alô, Hugo, não é o caso da Publicis, viu? Seja porque a rotina é desgastante, seja porque nossa carreira costuma ter uma sobrevida de atleta - mas pode-se prolongá-la na europa, como fazem sabiamente nossos melhores futebolistas - o fato é que a idéia de abrir sua lojinha ou pousada num cantinho quente do planeta tem seu lugarzinho cativo no desgastado imaginário do publicitário. Atire o primeiro Macbook quem, em mais uma madrugada virada na agência, não desejou despertar com o ruído das ondas em uma casinha pé-na-areia. Com fé nas palavras de Peter Drucker, o guru que previu que teríamos duas ou três carreiras na vida, não abro mão de devanear sobre o que estarei fazendo daqui a 5 ou 10 anos. Escarafuncho livros, revistas, filmes em busca de uma inspiração tão grande quanto aquela que me fez montar meu primeiro portfólio. E embora seja um clichê, a saída mais próxima parece ser mesmo o turismo. Não abrindo uma pousada nem me tornando um blogueiro, e sim a mais óbvia e, no meu caso, irônica: uma agência. Hahaha, abrir uma agência é o que menos quero em publicidade e no entanto, no turismo me soa como uma proposta encantadora ao pé do ouvido. Poder viajar pelos quatro cantos do mundo com o pretexto de estudar e elaborar novos roteiros para meus clientes. Além de ótima maneira de driblar a culpa da formiguinha que me a habita a alma, não seria uma bela vingança contra nossos atuais dias de expediente sem hora para acabar? É, estou cada vez mais convencido de que essa saudade de estrada e aeroporto que me bate de vez em quando seja um chamado do destino na voz da locutora que diz: "Atenção passageiros com destino ao plano B. Favor embarcar que um vôo mais alto espera por vocês imediatamente".

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O apuro do olhar


Na época da faculdade, me meti a fazer curso de desenho e fotografia. Esperava com isso complementar minha formação de publicitário, ainda sem saber o que catzo essas habilidades me ajudariam na carreira - depois descobri que, sob certo ponto de vista, até curso de corte e costura ajuda. Foi então que tive contato com princípios básicos do desenho, por exemplo, desenhar com pontos de fuga. E conceitos elementares da fotografia, como fotometria, revelação e ampliação. Acabei não desenvolvendo nenhuma das duas técnicas, embora esse be-a-bá tenha sido útil para compreensão do mais importante dessas manifestações artísticas. Estou me referindo ao olhar. De nada adianta o domínio completo da técnica sem o olhar apurado do artista. Só que o olhar, embora nos talentosos seja mais intuitivo, pode e precisa ser aprimorado por qualquer um ao longo do tempo. E isso só o exercício constante de desenhar e fotografar pode dar. Sei que estou chovendo no molhado, mas o treino do olhar, para quem mexe ou trabalha com atividades criativas, nem sempre é encarado como tarefa. Faz parecer que todo gênio nasceu super-dotado. Mas se até para ouvir música clássica é preciso treinar o ouvido, que dirá treinar o olhar para desenhar, pintar ou fotografar melhor. Faz algum tempo que comprei uma dessas câmeras automáticas da Sony para registrar as gandaias da galera e eventualmente, sair por aí fotografando algo "mais artístico". Percebi que os recursos da máquina produzem efeitos na foto que até podem enganar um leigo. Mas para os mais experimentados, nenhum desses truques compensam a falta do olhar de fotógrafo. Essa admiração pela lente interna desses artistas da imagem é que me fez fã de grandes fotojornalistas. É como se, em vez de fotografar, eles pintassem quadros na película. Basta conhecer, por exemplo, um pouco do trabalho do Henri Cartier Bresson. É a prova de que técnica apurada é apenas o atalho para fazer emergir a visão do artista. E de que não adianta só a tecnologia desenvolver ferramentas cada vez mais avançadas para a execução da obra. Porque vai ter sempre uma câmera, um pincel ou um computador melhor no futuro. Mas não há futuro para o artista sem o constante treino do olhar.

O vento

Vento que bate na janela,
e que massageia o rosto.

Vento que levanta a saia,
e que abaixa a relva.

Vento que enseba o cabelo,
e que varre a calçada.

Vento que molda a vela,
e que quebra a onda.

Vento que espanta a tristeza,
e que traz a esperança.

Vento que enche o balão
e que esvazia o pastel.

Vento que esculpe a falésia,
e que destrói a choupana.

Vento que fecha a janela,
e que abre um sorriso.

Vento que acelerado é tornado,
e que parado, é nada.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Nossos 80 contra os seus 80 milhões de anos.

Dia desses assisti a um documentário tipo Discovery, não lembro se foi mesmo no Discovery ou num canal primo dele. Para os tarados por relatos científicos deve ser lugar comum, mas para mim o assunto era novidade. Pois é, a história era mais ou menos assim: que existe um cometa que orbita em torno do Sol e que causa o maior estrago quando se aproxima do astro-rei. Me parece que quando esse cometinha metido a besta chega ao ponto máximo de aproximação com o Sol, acaba provocando um desequilíbrio que lança diversos meteoros no sistema solar, que inevitavelmente acaba atingindo os planetas, a Terra inclusive. É esse fenômeno que teria provocado a explosão que causou o inverno nuclear no nosso planeta, que acabou extinguindo os dinossauros na chamada era glacial. Como essa invasão de privacidade do cometa e consequente fanitiquito do esquentadinho do Sol só ocorre com intervalo de dezenas de milhões de anos, nós podemos ficar sossegados e tocarmos nossas vidinhas de parcos 80, 90 aninhos sem chance de sermos apanhados com as calças nas mãos por meteoritos incadescentes caindo sobre nossas cabeças. Isso até poderia ser um consolo se eu não me lembrasse que, por comparação, a vida do homem é um peido diante da duração da órbita daquele cometinha bicão. Então, por favor, não fique perdendo tempo lendo esses meus postzinhos insignificantes e vá viver sua vida.

Desculpe, só estou cumprindo ordens

A frase acima, geralmente proferida por um segurança, garçom ou porteiro, já não te irritou pelo menos uma vez? Normal, você é brasileiro(a), carrega no seu dna o famoso "jeitinho" e quase sempre fica contrariado quando alguém tenta lhe impor regras, mesmo quando no fundo, no fundo, sabe que está errado - e se o contrariado for burguês sem classe, então, baixa um coronelzinho arretado, que sai de baixo. A ironia é que, se por um lado a gente se irrita em ter de seguir normas, por outra adora cagar uma regrinha por aí. E esse hábito pouco higiênico têm se proliferado, tamanha a insegurança que paira no ar nesses tempos atuais pré-apocalípticos. Confesso que fico irritado com tanta gente apontando para as mais diversas direções para vender um "horizonte seguro" à multidão cada vez maior de almas sem GPS. Isso em todas as esferas da vida humana, seja profissional, religiosa, amorosa, relativa à saúde, etc, abrindo enormes brechas para a exploração mercantilista. Problemas de relacionamento? Chovem livros, palestras, programas de rádio e tv, folhetos de vidente, vendendo a solução. Quer ser o profissional do futuro e garantir seu emprego? Temos toda a sorte de cursos, seminários e workshops a preços convidativos. O apocalipse está perto? Calma, ainda é tempo de purificar sua alma em retiros, tomando parte em perigrinações e, principalmente, doando seus bens ao Senhor. Por favor, me poupe. Não aguento mais ouvir bulshiteiro vendendo o próximo remédio que vai aliviar minha tensão de não saber para onde o mundo vai. Isso ninguém nunca soube. Só que a confluência, ou para ser mais "muderno", a convergência simultânea de tantas ameaças à especie humana - falo de crise econômica, destruição da natureza, reconfiguração do emprego, concordata da GM - deu origem a uma pandemia de insônia e roeção de unha como nunca vistos. E daí que até o metro quadrado de abrigo anti-nuclear deve ter batido recorde de valorização. Então, para não cair nessa neura coletiva - também sou de ferro, uai - venho sempre com minhas evasivas, que também não deixam de ser minhas regrinhas. Respondo que não sei o que fazer, que vou esperar pra ver no que vai dar, que seja o que Deus quiser. Nesses momentos de insegurança-master, sou confortado e endossado por Sócrates, que já dizia sabiamente há milhares de anos: "Só sei que nada sei".