terça-feira, 30 de junho de 2009

Do que a gente não conhece

Nesse vasto mundo de tanta diversidade, diferenças culturais e riqueza de experiências, não me atrevo a versar sobre assunto que ignoro. Incrível que um desses temas seja a fome. Porque nossa experiência fisiológica deveria nos autorizar a falar com conhecimento sobre ela. Mas não me refiro àquela fome que por algumas horas nos incomoda vez ou outra. E sim sobre a fome verdadeira, de não ter o que comer por dias, dessas de tentar se enganar para conseguir cair no sono. Esse flagelo que atinge grande parte da humanidade, passa ao largo da nossa vidinha de morador de Manhattan que ignora os famintos do Bronx. Esse assunto, a fome, me veio à tona alguns dias atrás, lendo matéria sobre o novo documentário do José Padilha, "Garapa". De acordo com a reportagem, o diretor foi ao sertão nordestino atrás daquelas famílias miseráveis que tomam carne de calango por filé mignon. Registrou depoimentos de quem chega a dar mamadeira de água com açúcar para crianças, na falta de leite - a tal garapa que dá título ao filme. Na entrevista, defendeu o assistencialismo do Bolsa Família, argumentando que se até empresas privadas recebem recursos governamentais para se manter de pé, é coerente que seres humanos também tenham acesso a essa tábua de salvação. Ainda não vi o filme do Zé Padilha, mas concordo com ele. Não por ser petista ou por qualquer outra bandeira ideológica, já que o projeto Bolsa Família, com outro nome, teve início no governo FHC. Mas por não querer colocar em discussão algo que tem caráter urgente e pragmático como matar a fome de milhões de pessoas. Ontem, descendo pelo elevador aqui do escritório, presenciei funcionárias do café chique do prédio levando embora os doces que não foram vendidos e que deveriam ser devolvidos ao depósito, provavelmente para serem jogados fora. Sugeri que aqueles doces apetitosos fossem doados a crianças de instituições de caridade, que com certeza se lambuzariam com tamanha fartura de guloseimas. Aí me lembrei daquela lei besta que impede doações de comida perecível para que não provoquem mal-estar digestivo em necessitados. Ora, quer pior mal-estar digestivo do que a fome? A gente vê absurdos como funcionários do McDonalds jogando fora sanduíches que ficaram na espera 1 minuto a mais do que o previsto pela normas de qualidade. E contrasensos como produtores agrícolas jogando no rio parte da super-safra de tomate para especular sobre o preço do legume no mercado. Some-se a isso, se não me falha a memória, os 30% de alimentos desperdiçados no Brasil em decorrência da má logística de estocagem e distribuição. No frigir dos ovos - ou da falta deles - me parece hipócrita ficar contra qualquer iniciativa, governamental ou não, que leve alimento a bocas famintas sertão afora. Não dá para ficar discutindo assistencialismo quando tem criança por aí enganando estômago com mamadeira de água açucarada.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Disparate

Como disse em outro post, semana passada estive no festival de publicidade de Cannes. Numa das noitadas de lá, nos bares frequentados tanto por participantes do festival quanto por turistas de férias na cidade, lembro que troquei idéia com uma garota da Honduras, que também estava ali por causa da propaganda. Foi bem rápido, tinha uma galera dançando na rua em meio a uma fumaceira de balada. A garota estava lá como young creative - uma espécie de jovem talento - de seu país. Logo imaginei que não devia haver mais do que dez representantes de Honduras no festival. Pois bem. Daí que eu chego no Brasil, abro o jornal e vejo a notícia de que o presidente de Honduras fora vítima de um golpe militar com o apoio do congresso de seu país. Não cheguei a ler a notícia, me parece que o presidente tentava prorrogar seu mandato contrariando a constituição de lá. De qualquer maneira achei estranho que isso ainda aconteça em países onde imaginei que a democracia estava consolidada. Daí lembrei do perigo que representam certas conjunturas políticas que envolvem abuso de poder, corrupção e outras ameaças as instituições democráticas. Fiquei pensando na menina lá em Cannes, bem longe de casa, procurando aprender o que há de mais moderno em linguagem e tecnologia de comunicação para aplicar num país que acabou de sofrer um golpe militar. Mas o festival certamente estava coalhado de gente da China, Coréia do Norte, Rússia e outros onde o regime político também não é dos mais liberais. Ou seja, situacionistas podem ser depostos e oposicionistas presos e exilados de seu país. Já o Ronald Mcdonald, imagino que vai continuar tendo recepção de chefe de estado aonde for.

domingo, 28 de junho de 2009

O homem que não suava

Quando o bebê veio a luz, o obstreta, estupefato, percebeu que sua pele delicada e macia já estava completamente livre da menor gotinha de líquido amniótico. É como se o recém-nascido tivesse passado por uma limpeza detalhista de suas dobrinhas com o melhor óleo higiênico do mundo. Esse foi o primeiro de todos os banhos que Astolfo dispensou em sua vida. Não demorou para sua mãe perceber que, embora tivesse nascido na época mais quente daquela região equatorial, Astofo simplesmente não suava. Podia ser dia de sol escaldante e vento parado, não havia meio de fazer gotejar o que fosse dos poros daquele bebê de bem com a vida. Os médicos tentaram desvendar o mistério, mas só se enrodilharam em debates que nada esclarecia sobre o fenômeno. Enquanto isso, Astolfo crescia de vento em popa, como se um ar condicionado invisível o acompanhasse por todos os cantos, naquela terra onde se fazia 40 graus de média a sombra. Com o tempo se demonstrou que o fato de não suar era na verdade uma metáfora da disposição de Astolfo para a labuta. Que era nenhuma. Sua vocação de bon vivant foi se confirmando em todas as etapas de sua vida. Primeiro como excelente aluno de primário, onde resolvia complexos exercícios matemáticos sem pestanejar. Depois, com as mulheres, que lhe caíam no colo sem o menor esforço. E depois, no trabalho, cujo primeiro emprego foi logo abortado, por conta da bem-vinda chegada da abastada herança de um tio solteiro. Astolfo nunca movera uma palha. Inclusive para implantar seu grande projeto de vida, financiamento e colaboradores surgiram como num passe de mágica. Tratava-se da reedição da arca de noé, uma construção faraônica em madeira no formato da bíblica embarcação e que seria usada como um imenso zôo com todas as espécies catalogadas pela ciência. Em poucos dias, Astolfo conseguiu atrair os animais, que confinou em simulações dos ambientes naturais de cada espécie dentro da arca. No dia da inauguração uma multidão se formou, aguardando sua vez de conhecê-la. Foi quando Astolfo, parado junto a entrada da arca para agradecer as saudações do público, começou a gotejar suor de seu rosto pela primeira vez em sua vida. O filete do líquido escorria cada vez mais forte, afastando a multidão, até tomar a proporção de uma comporta de hidrelétrica que se abria. Tudo em volta da arca se inundou, formando um grande lago onde a arca começou a boiar. As pessoas se afogaram e a vida na Terra se extinguiu, com exceção dos seres dentro da arca. Essa história poderia ser uma grande lição de moral encerrando algo como "na vida , nada de bom vem sem suor" ou algo do tipo. Mas o fato é que Astolfo e sua mulher conseguiram entrar na arca, sendo os únicos humanos a sobreviver. Depois que a água abaixou, todos os animais que a arca salvou acabaram reproduzindo o paraíso, como numa segunda versão de Adão e Eva. Astolfo, tal qual eu destino havia selado desde seu nascimento, poderia passar o resto de seus dias ao lado de sua Eva, sem fazer um caralho para viver muito bem.

Maicon

Hoje ouvi do Fábio que os caras que por aqui se chamam Maicon, como o lateral da seleção isquidunga, ganharam o nome por causa do dito cujo rei do pop. Não sei se porque achava que tinha que ser "Maicou" ou por algum outro motivo, mas nunca tinha realizado esse fato, até certo ponto óbvio. Claro que Michael é um nome que foi aportuguesado por causa do grande barulho que o Jackson fez no mundo inteiro. Engraçado que ele fizesse o maior escarcéu no palco sem nem ao menos encostar o pé no piso, como parecia no passinho moonwalk. O neguinho era danado de bom na dança e soltava altos agudos no vocal. Fui ao show dele no Morumbi e parecia um videoclipe ao vivo tamanha a precisão da coreografia. Sem contar a frieza de Michael Jackson ao microfone, que não interagia com a platéia de jeito nenhum. Mas é esperar demais de alguém que só conseguia interagir com alguém através da própria música. Fora dela, ninguém tem dúvidas de que foi um perfeito E.T. Quem sabe agora tenha ido ao mundo a que de fato pertence.

Desencannes

Não, isso não é uma homenagem ao site de paródia publicitária que já esculacha legal o nosso trabalho. Estou falando do festival mesmo, onde estive na semana passada. Antes que alguém diga que sou mal-agradecido, quero agradecer aos que me patrocinaram a viagem. Antes que alguém diga que sou mau perdedor, porque não ganhei leão, quero mandar meus parabéns aos amigos que foram premiados no festival. E antes que alguém diga que envelheci, que não me entusiasmo mais com a premiação como antigamente, bem, para isso não tenho defesa mesmo - estou falando de envelhecer, porque em criação publicitária ainda dou meus petelecos. Mas a verdade é que o festival foi bem chato mesmo. Não sei se pela entressafra de trabalhos interessantes por causa de crise - que lá fora pegou mais pesado que aqui -, se pela repetição da bulshitagem da moda (novas mídias, interatividade, redes sociais, campanha integrada, etc) ou se pelo excesso de politicagem e tapinhas nas costas. O Toninho, que foi comigo para lá e pela primeira vez, ficou decepcionado com o tamanho do evento, pois imaginava que o festival de propaganda parava a cidade. Mas percebeu que era só mais um acontecimentozinho ali num pavilhão de Cannes, que a esta altura começa a receber os primeiros turistas da temporada, que de fato só se inicia em julho. Eu, que nunca tive a falsa impressão de que propaganda possa ter esse grau de alcance, apenas confirmei ao meu companheiro de viagem que a maioria do pessoal que passava pelo Palais nem se dava conta do que ocorria ali. Afinal, algumas semanas antes tinha acontecido mais uma edição do festival de cinema, este sim alvo de todos os flashes e atenções. Mas é assim também no dia-a-dia, pois a propaganda sempre passou mais despercebida do que muitos publicitários gostariam.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Segurança, pra quê?

Você também deve ter ouvido falar do caso de uma mulher que guardava a economia de um milhão de dólares dentro do colchão e acabou perdendo tudo quando sua filha resolveu fazer uma surpresa, trocando o colchão por um novo e jogando o antigo no lixo. Tragicomédia a parte, isso mostra como viver em função da segurança pode ser contraproducente, ou como diria Vicente Mateus, uma faca de dois legumes. Certamente se a mulher tivesse gasto parte do dinheiro para redecorar a casa, além de se sentir mais satisfeita, sua filha não teria se compadecido de sua penúria e jogado fora suas economias. E esse é só um caso onde a precaução em excesso é desnecessária. Cercas elétricas, por exemplo, não impedem uma quadrilha de invadir um condomínio. Parar o carro no valet não evita seu roubo - e aí, até o seguro do estacionamento pagar a indenização, você também vai ficar a pé, assim como se o seu carro tivesse sido furtado na rua. Deixar de tirar férias não blinda contra demissões. E por aí vai, exemplos não faltam. Tenho a suspeita de que esse comportamento está subjugado a indústria do medo. Uma espécie de entidade conspiratória que vive de explorar nossos medos mais profundos. O único deles a que deveríamos prestar atenção é o medo da ameaça real de morte. Os outros são subprodutos dele, criados pela nossa mente por associação ao medo maior. Por isso são injustificados, desproporcionais aquilo que gerou o medo. Mas eu, como todo ser humano que sente medo, não proponho aqui que o ignoremos. Apenas que aprendamos a conviver bem com ele. Dizem que o contrário da coragem não é o medo, é a apatia. Medo e coragem podem conviver juntos sim, numa boa. Mas só aceitando essa convivência dentro de nós, ainda que conflituosa, é que poderemos nos livrar de nossos falsos colchões de segurança. Pois na prática foi só isso, uma falsa sensação de segurança, que a dona do colchão perdeu no episódio da troca. Porque até então, ela nunca tinha precisado daquele milhão de dólares para tocar sua vidinha.

O gosto do risco

Hoje o meu Palmeiras foi eliminado da Libertadores. Não foi a primeira vez e nem vai ser a última. Houve tempos em que eu ficava triste com derrotas do meu time como se fosse algo pessoal. Felizmente esse tempo passou. Nem vi o jogo, estava numa festinha e não reuní paixão suficiente para abandonar meu copo de vodca pelo nervosismo na frente da tv. Mas se me desse a esse trabalho seria, além do amor pelo meu time, por Vanderlei Luxemburgo. Não porque Vanderlei encarne a pessoa que eu almeje ser um dia. Arrogante, brega, tido como mau caráter, Luxemburgo é o anti-ídolo, embora, por outro lado, sua excelente visão de jogo seja indiscutível. Mas dá gosto de ver um time comandado por Luxemburgo jogar. Nem sempre pela plástica do jogo, porque isso depende da categoria das individualidades do time. Mas pela disposição de atacar, agredir o adversário, a fome pela vitória como se não houvesse amanhã. As vezes Luxemburgo peca até pela falta de juízo. E quando sua ousadia não traz resultados, acaba como pára-raio da tempestade que sucede a derrota. Mas é o único técnico que tem peito de mexer em seu time quando este está inoperante, com apenas 20, 30 minutos de jogo. A maioria, os covardes, esperam até os derradeiros 20 minutos para se "arriscar", mesmo quando precisam desesperadamente da vitória. Vanderlei, não. Ele cedo aprendeu que para os vitoriosos, derrotas fazem parte do jogo. Cansei de ver treinadores retranqueiros perderem seus jogos tentando segurar resultado. Esses são especialistas em terminar campeonatos em terceiro, quarto, quinto lugar. Devem se orgulhar de serem "regulares". Hoje os times de Vanderlei, se não são campeões, também terminam os campeonatos entre os primeiros. Mas aposto que quando ainda despontava na carreira, para ele pouco importava ser o segundo ou o último. Em suas entrevistas, o treinador repete sua máxima favorita: "o medo de perder tira a vontade de ganhar". Joguinho de palavras que resume sua filosofia de vida. Talvez por isso quando perde, não vemos Luxemburgo perder a compostura. No fundo ele sabe que é só mais um campeonato que se foi, em que ele encarou todas as partidas com a mesma vontade de ganhar de sempre. E como prêmio, pôde ir para casa com as consciência tranquila.

terça-feira, 16 de junho de 2009

O divã proletário

Todo mundo tem direito a uma sessão de terapia diária com o Dr William Bonner. É só chegar em casa, se esparramar no sofá, ligar a tv e escutar bem seus sábios conselhos. Em vez de discutir seus problemas, o Dr William vai falar de tragédias como famílias inteiras sendo soterradas em seus barracos por desabamento de encostas. Ou então, da chacina ocorrida nessa madrugada em Capão Redondo. Muito provavelmente vai discorrer sobre mais um caso de corrupção envolvendo deputados, que daqui a um mês vão desencadear numa CPI e daqui a dois anos, em impunidade. Para amenizar vai falar sobre os preparativos da Copa de 2014. Ou ainda, de uma catadora de lixo que achou um bilhete premiado da Megasena na rua. E você vai estar lá, escutando com alívio o dueto de âncoras a enumerar mais notícias ruins em um só dia do que lhe aconteceu em toda a sua vida. No final, em vez de "o seu tempo acabou", você vai ouvir um bem mais reconfortante "boa noite". Aí você pode optar por fazer mais uma sessão de terapia com a Dra Glória Pires ou ir direto pra cama. Ou então, se aconchegar para uma soneca ali mesmo no seu divã, pegar seu controle remoto e mandar o terapeuta embora.

É feio rir.

Uma vez, ainda iniciante na carreira de redador, fui a uma das edições da Semana de Criação Publicitária. Ao final da palestra de um figurão gringo, lembro que um rapaz na platéia levantou a mão e perguntou o que ele achava de comerciais "emocionais". Por aqui a gente sabe que ele se referia aos comerciais dramáticos, que fazem pit-boy deixar escorrer lágrimas. Mas o gringo não interpretou da mesma forma, já que também considerava o humor uma emoção e das mais importantes. Isso me fez constatar o quanto a comédia não é levada a séria nem valorizada no nosso dia a dia, principalmente no mundo corporativo. Quantas vezes ouvi de cliente, ao encomendar ou analisar um trabalho criativo, para evitar as "gracinhas". Quase sempre quando as "gracinhas" em questão eram o cerne da idéia. Mas a gente encontra essa desvalorização do humor em todas as partes. Vejo isso no cinema, por exemplo. Não me lembro da última comédia que ganhou um Oscar. Tô falando da comédia-comédia, não de subgêneros como a comédia romântica. Refiro-me ao besteirol mesmo, a piada pela piada. Para mim isso tem duas explicações. Uma é que fazer uma ótima comédia é das tarefas mais difíceis (faça o teste: entre numa locadora e constate a escassez de boas comédias comparado a fartura de bons dramas e thrillers). A outra explicação é que os acadêmicos devem achar uma afronta entregar o sério e respeitoso Oscar a alguns "vagabundos que vivem de fazer rir". Não poderiam estar mais enganados. Por trás de suas máscaras de palhaço, grandes comediantes da história eram tidos como pessoas tristes. Charles Chaplin não era propriamente feliz. Seu talento brilhante era apenas a expressão de sua sensibilidade. Alguém já disse que humor é o maior e inequívoco sinal de inteligência - não por acaso as mulheres adoram os homens que as fazem rir. Mas nesse mundinho hipócrita em que tanta gente se leva tão a sério, alguém que vive achando e fazendo graça por aí só pode ser um completo insensato. O mais irônico é que justamente as pessoas mais competentes são as que encaram seu ofício como seu principal brinquedo, como uma grande brincadeira. Aposto que não há lugar mais prazeroso e confortável para Bill Gates do que uma cadeira na frente de um computador. São os diletantes, os que fazem o que fazem pelo prazer de fazer. Tanto isso é verdade que, quando queremos dizer que alguém é um expert em algo, dizemos que essa pessoa "faz aquilo brincando". Infelizmente o sentido da brincadeira foi deturpado e a gente é obrigado a ouvir de gente "séria" que brincadeira tem hora, como se ainda fôssemos crianças a obedecer nossos pais. O perigo disso é a gente se deixar levar pela idéia de que viemos ao mundo para só levar a sério coisas como cargos, status e dinheiro. Quando talvez a coisa mais séria da vida seja o brincar.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Checking

A assessoria de imprensa, a publicidade, o pessoal de direitos autorais, nessas áreas todas e possivelmente em outras, existe o profissional de checking. Pegando o exemplo mais próximo, o da publicidade, é a pessoa que literalmente checa se determinado anúncio ou filme saiu no espaço programado, seja na revista ou break comercial. É mais ou menos o cara que vai lá e comprova se o acordado foi cumprido ou não, se a teoria de fato virou prática. Pensei aqui comigo: pôxa, todo mundo já foi vítima de suposições negativas, que quase sempre não se concretizam, mas a essa altura já sugaram toda a sua energia. Pois alguém que vai lá e vê qual é que é por você, é tudo que a gente precisa para viver em paz. Eu pagaria por um cara assim. Por exemplo, se no trabalho você recebe uma resposta atravessada do seu chefe, em vez de ficar supondo se ele tá ou não com diarréia, manda o cara lá para esclarecer. Pelo bem ou pelo mal, é alívio imediato. Outro exemplo: aquele amigo de anos nem responde mais aos seus telefonemas. Manda o cara checar o por que. No terreno amoroso, então, esse profissional ia fazer fortuna. O pretendente não ligou mais? A namorada não sei por que cargas d´água não gostou do que você nem sabe o que seja? Não custa mandar o checking dar uma averiguada. O que foi feito tá feito, mas uma lição é sempre bem-vinda. O único problema é que um profissional útil assim não seria barato. Mas a consciência tranquila, uma noite bem dormida, o prazer do dever cumprido, como diria o comercial, não têm preço.

O sagrado lanchinho

Fisiologicamente a refeição mais importante do dia seria aquela que sucede o maior período de jejum, portanto o café da manhã. Parece fazer sentido já que esse regime é seguido por povos sábios como os orientais. No meu caso, que prezo aquela sonequinha pós toque de despertador, o café da manhã, quando não passa em branco, passa por impostor de refeição, se resumindo a um pedaço de pão com leite engolido na saída para o trabalho. Isso deve fazer um mal dos diabos para o processo de acondicionar meu corpo a mais um dia de labuta, mas enfim, ele já se acostumou. Abro exceção quando o chamado do estômago vem lá pelas seis, seis e meia, para o lanchinho de fim de dia. Eu o considero sagrado para todo mundo que trabalha em três turnos. Além de necessário para o sprint final do expediente, é uma espécie de consolo para quem fica no escritório enquanto vemos a boiada corporativa ganhar as ruas. E não me contento com qualquer barrinha de cereais sacada da gaveta, não. Lanchinho do fim do dia é um ritual e tem que ser seguido à risca. Começa por convocar um ou dois colegas dispostos a bater perna na rua em direção à próxima padoca. No caminho vamos serpentear por um congestionamento de carros e bandos de usuários de ônibus apressados. Chegando lá, inevitavelmente cruzaremos com a galera da cervejinha tira-gosto-de-escritório. Geralmente aquela secretária gostosa levando as últimas cantadas do dia de três colegas mais alegrinhos por conta da cerveja. Enfim, não é para o nosso bico. Para ele, está reservada uma esfiha, um enroladinho de presunto e queijo ou, no caso da culpa bater, um sanduíche de peito de peru no pão preto. Aprecio qualquer uma dessas opções acompanhada da indefectível coca zero com gelo e limão. Vinte minutos e papo colocado em dia depois, já estou mais conformado para encarar de volta o branco e o gelo do escritório. Sabendo que dali para frente, se não tiver nenhuma sangria desatada, vai ser só tocar a bola do lado até subir a placa dos minutos de acréscimo.

domingo, 14 de junho de 2009

Amadurecer

Escrever de madrugada tem várias consequências. Uma é o sono, que as vezes bate forte durante a escrita e faz você perder o fio da meada. Outra é a minha tendência de abordar assunto sério e acabar caindo em pieguice, escrevendo resoluções de vida. Uma terceira é me exigir sinceridade, pois já que estou fazendo hora extra para preencher esta página, procuro evitar meias palavras. Embora seja difícil não tentar sair pela tangente quando o assunto é tão pessoal quanto o próprio amadurecimento. Amadurecer é um processo de esgotamento. É a falência de um modelo que não está dando certo. É parar de culpar os outros e as circunstâncias. É admitir sua responsabilidade e seus limites. Amadurecimento é uma escolha. Chega uma hora em que você tem que optar entre continuar dando desculpas ou resolver de vez o problema. E não é fácil. Na nossa visão imatura, uma solução mágica deveria nos ser entregue de mão beijada. Na era assim na nossa onipotência infantil? Era chorar e receber. Mas a gente cresce, as dificuldades aparecem e percebemos que não vai ser tão simples. Vamos ter que arregaçar as mangas e dar nossas cabeçadas se quisermos conquistar coisas. Com a desvantagem de não poder chamar a mamãe ao primeiro fracasso. Aí descobrimos que nem tudo que a gente quer é possível. E das coisas possíveis, a maioria não é fácil. Então temos duas escolhas. Deixar para o destino ou os outros resolverem nossas questões - e botar a culpa neles se não der certo. Ou assumir nossas próprias responsabilidade por nossos êxitos e fracassos. Admito que já culpei muito meus pais, meus chefes, as pessoas a minha volta pelos meus insucessos. E, de verdade, cansei disso. Resolvi que daqui para frente vou ser 95% responsável por meus atos e omissões. Os outros 5%, deixo para o destino. Porque 100% maduro, graças a Deus, nem até o final da vida vou conseguir ser.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

A cidade indoor

Sabe aquele tapa-olho que colocam no burro para ele não se distrair enquanto segue em frente? Parece eu dirigindo na cidade de São Paulo. Sem olhar para os lados, mirando o destino com o olhar perdido no asfalto e fazendo movimentos de piloto automático. Para isso contribui que 70% dos caminhos que faço são repetições diárias do trajeto para o trabalho, ou para o supermercado, ou para o mesmo bar de sempre. Ou seja, meu senso de direção raramente é acionado, quase sempre está no modo stand-by. Mas o cacoete de não olhar para os lados também vem do desconforto de não conseguir parar num sinal em paz. Provavelmente serei abordado por vendedores ambulantes, entregadores de jornal gratuito, de folhetos imobiliários ou por aqueles indefinidos entre pedintes e assaltantes e que por isso me põem apreensivo. Eu, dentro do meu carro, lembro aquele filme antigaço do John Travolta, "O rapaz na bolha de plástico". Com falsa sensação de proteção pelo insufilm - na verdade, nem isso, porque o meu é bem clarinho, dá para enxergar tudo - e música no último volume, me isolo como numa bolha hermeticamente fechada sobre quatro rodas. Meu carro na verdade é um vagão de trem que vai de origem a destino sem paradas em estações. O expresso Vila Mariana-Vila Olimpia, com desvios esporádicos para a terceira vila da minha vida, a Madalena. Invejo alguns europeus, que conseguem atravessar a cidade inteira de metrô e trem, transporte público de verdade, sentindo o pulsar das ruas todos os dias. Porque ao contrário do ex-presidente Figueiredo, eu gosto do cheiro do povo. Essa vida indoor que a gente leva em São Paulo é prejudicial a saúde. Não é a toa que paulistano se pica daqui feriado si, feriado sim.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Paulistano' s way of life

Uma das coisas que estranhei quando vim para São Paulo estudar é a aparente - algumas vezes real, embora atávica - frieza do paulistano. Antes que alguns amigos se ofendam, eu explico. Cheguei aqui todo caipirinha, ingênuo, ávido por novidades, esperançoso de conseguir , depois de anos de renúncia pelos estudos, transformar minha vida de universitário em uma versão mais modesta de "Curtindo a vida adoidado" - isso até entrar numa república de quase formandos que jogaram água fria em minhas pretensões de bon vivant do Cepeusp. Pois bem, já que não consegui adesão dos meus colegas de república veteranos ao meu clima de festa de recém-chegado, esperava encontrar isso na própria faculdade, pois teoricamente todo mundo ali estava na mesma barca. Não demorou para perceber que não era bem integração que o pessoal buscava ali - tá certo que era uma galera de exatas, mais travadinha, e o curso era de duração pouco agregadora, meio período. Compreensível, já que a rotina dos alunos da capital pouco tinha mudado, eles apenas haviam trocado o colégio pelo faculdade. Amigos eles já tinham, assim como um dia a dia preenchido com as mesmas coisas de antes: malhação, curso de línguas, etc. Eu via os colegas paulistanos vazando assim que a aula terminava e só mais tarde entendi que aquela pressa toda não era uma aversão ao convívio com os alunos alienígenas vindos do interior, de Mato Grosso, do Paraná e lugares longinquos. Era necessidade mesmo, de sair antes para cumprir horários sem depender do tráfego, por exemplo. Vários anos se passaram e agora eu, paulistano naturalizado, fico observando a mesma coisa acontecer com galeras novas que chegam a SãoPaulo. O lema é andar todo mundo junto feito aves migratórias voando em formação, para se defender da cidade inóspita - quando você chega a São Paulo, tudo parece bem maior e assustador - e dos paulistanos. Hoje já incorporei esse Paulistano way of life, esse jeito seco de quem nem olha para os lados em busca de seu objetivo. Só espero que não tenha perdido a minha essência interiorana, de sorriso fácil. Não quero ser mal interpretado por um estagiário do interior quando me vir sair apressado pela enésima vez para resolver mais um pepino durante o horário do almoço. Detestaria que com base na minha rotina ele começasse a maldizer o paulistano, esse povo erroneamente tachado de frio só porque recusa 90% dos convites para almoço.

Tribos

Uma coisa engraçada a respeito de tribos é que você reconhece e classifica todas, mas acha que não pertence a nenhuma. Eu, por exemplo, pertenço a tribo dos publicitários - que compõe com designers, fotógrafos, produtores e outras adjascências uma nação um pouco maior - mas não me reconheço em seus estereótipos. Ou pelo menos, não na maioria deles. Mas uma vez uma garota sentou-se ao meu lado numa mesa e sem titubear disse algo como "vocês, publicitários...". Eu, abismado como se estivesse diante de uma sensitiva, perguntei "é tão fácil assim perceber que sou publicitário?". Estranhou a pergunta, já que para ela era evidente deduzir minha profissão. Engraçado porque de fato acho que não componho o figurino completo, não visto preto, não uso brinco, não tenho tatoo, não tenho cabelo arrepiadinho, não tenho um monte de coisas de publicitário. Mas no todo, eu pareço. Estereótipo é isso, uma caricatura. Da mesma forma que é fácil reconhecer a tribo mauricinha, o contrário também acontece. E se você enxerga a tribo como uma massa homegênea de gente que pensa, se veste e se comporta tudo igualzinho, é assim que também vão enxergar sua turma. Mas dentro da mesma tribo você sabe que existem subdivisões. Que criam distinções entre grupos de pessoas aparentemente parecidas. Ou seja, não é porque alguém pertence a sua tribo que a identificação vai acontecer. Por isso quando observamos de fora uma tribo, convém não se precipitar nos julgamentos. Com certeza existem pessoas lá de dentro que vão combinar com você. Umas mais, outras menos e muitas nada a ver. É legal se manter aberto para se misturar a pessoas de outras tribos de vez em quando. No mínimo você vai perder o preconceito com elas. No máximo, pode ficar com alguém ou fazer amizades. No fundo é tudo gente, é tudo igual.

terça-feira, 9 de junho de 2009

O dia do basta

Chega um dia na vida em que você se dá um basta. É o dia da exaustão. O dia em que o limiar entre quem você desejou ser e quem você é se desvanece. E como foi difícil chegar a esse dia. Quantas vezes você tentou se enganar achando que devia ser quem não tinha nada a ver com você. Quantas vezes se cercou de quem parecia pertencer ao seu projeto de se tornar não sei o que. Tudo porque você queria preencher a lacuna que te deixaram sem que você entendesse quem e porque. Até descobrir que não existe o porque. Só aconteceu e você teve que conviver com isso. Mas então, cansado de procurar a resposta que não existia, você foi procurar a única possível. Você. Você decidiu abrir mão das ilusões. Resolveu exorcizar os fantasmas, tirar os esqueletos do armário e ficar só com o que era de carne e osso. Você nunca tinha sido tão honesto consigo mesmo. Nunca olhou nos seus olhos e de quem quer que fosse, como naquele dia em que começou a deixar para trás a anti-vida, o desamor. Para se prender ao presente, ao real, ao palpável. Felizmente o momento decisivo chegou para te deixar viver.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

O placar da vida

Abstinência sexual: zero a zero
Aprovação de lei: 2/3 contra 1/3
Casamento: 1 contra 1
Masturbação: 5 contra 1
Mesmice: 6 contra 1/2 dúzia
Futebol: 11 contra 11
Consulta odontológica: 32 contra 1
Poder: 51% contra 49%
Ditadura: todos contra 1
Democracia brasileira: a maioria contra poucos

Fim de jogo

Há pouco tempo eu reclamava que o natal estava chegando rápido demais. Agora são as copas do mundo: mal acaba uma e já aparece outra na frente. Aliás, não tem parâmetro de passagem de tempo tão cruel como o futebol. Carreiras curtas, ídolos que aparecem e somem da noite para o dia. Quer constatar isso, acompanhe os campeonatos de showbol. Vai sempre ter um jogador que você não imaginava estar aposentando, fazendo partidas de exibição. Aquele que você tinha quase certeza de estar gastando os últimos cartuchos da carreira num time do Catar ou do Casaquistão. Mas não, ele está bem ali naquela quadrinha de grama sintética, vários quilos mais gordo e algumas gramas mais careca. É assustador ver que o craque que há alguns anos arrebentava no seu time, agora parece o seu tio disputando a pelada de casados contra solteiros - bem mais habilidoso, claro. Natural, porque agora sem preocupação de manter a forma, os ex-jogadores caem mesmo na merecida esbórnia. Só que não deixa de ser meio melancólico. "O quê? Aquele craque do meu time que metia pelo menos um gol por partida é o mesmo gordinho que agora dribla fazendo tabela com a parede? Não, você não está enxergando direito. Você está é ficando velho."

Do porquê de perder o sono

Antes eu acreditava que uma noite bem dormida tinha que ter no mínimo oito horas. Invejava quem encostava a cabeça em qualquer canto e "apagava" em poucos segundos. Era como uma benção negada aos candidatos a insone como eu. Mas esse tempo passou. Talvez por mudança de metabolismo, talvez por vontade própria, gosto de dormir tarde. E se não acordo cem por cento descansado, vou compensar o deficit de sono no dia ou no final de semana seguinte. Gosto de juntar o final da noite com o comecinho da madrugada, arrumando o tempo livre que não tenho durante o dia. Para ler, conversar, escrever, assistir e refletir. Cidade grande é cruel com quem precisa de um tempo só seu. É muito tempo desperdiçado em trânsito, filas, burocracia e formalismos. Tive que escolher: ou eu, ou o sono. O sono perdeu algumas horas para mim. Porque se a falta de sono é prejudicial a saúde, emendar um dia de trabalho no outro também é. Todo dia preciso quebrar a rotina cama-trabalho-cama. Não com milhões de compromissos sociais, longe disso. É só o tempo de ler, refletir, examinar o dia que passou. Só para manutenção e possível correção de rota. Eu poderia fazer isso durante o dia, mas tem sempre alguém tentando me convencer que cumprir um prazo é a coisa mais importante da vida.

domingo, 7 de junho de 2009

Fechado para balanço

Na noite de sábado já tiro o telefone da tomada antes de dormir. Porque o domingo, de acordo com a lei de Deus, foi me dado como direito. Eu decido quando abrir os olhos. Quando sair da cama. Eu é que faço a opção ou não de perder o dia no sofá, zapeando porcaria na tv. Eu é que digo quando meu estômago pode ter fome. Eu é que escolho deixar ou não meus cabelos desgrenhados e ensebados por todo o decorrer do período. Eu é que faço do meu domingo um dia útil ou um caprichosamente inútil. Domingo é o intervalo do jogo. É a entressesafra. O hiato entre o êxtase do sábado e o torpor da segunda. O uniforme oficial do domingo é o pijama. Mas como é domingo, você não tem nenhuma obrigação de ficar com ele. Aliás, domingo é o dia da desobrigação. A desobrigação de acordar, levantar, se arrumar, cumprir horários, seguir agendas, comer na hora certa, ligar para dar satisfação. Domingo é tão desencanado que as vezes até esqueço de cagar. Ou seja, nem o cu cumpre ordens no domingo. O domingo foi feito para o nada. Para ficar de olhar perdido mirando esse nada. Domingo é a tecla stop para os sadios e a tecla pause para os estressados. Antes eu ficava triste com a musiquinha do Fantástico que anunciava a segunda. Hoje essa mesma musiquinha anuncia que ainda tem muita programação depois para eu ficar vendo de bobeira até cair no sono.

Made in Brazil

Por esses dias vi dois filmes nacionais em DVD que retratam de maneira peculiar a vida de brasileiros comuns. "Linha de passe" aborda com sensibilidade os excluídos da cidade grande. "A casa de Alice" revela a solidão por trás da aparente normalidade. Nesses dois belos filmes, o cinema brasileiro deixa um pouco de lado os temas regionais e de violência urbana para falar de de quem você cruza nas ruas - e quase sempre não enxerga. O motoboy, o taxista, a manicure, a faxineira. Mas sem estereótipos, se atendo a relatos da vida pessoal de cada personagem. Histórias de gente comum e por isso, universais.

Talento e/ou vocação

Antigamente achava que talento e vocação eram a mesma coisa. Depois entendi que eram dois conceitos diferentes, que poderiam coexistir ou não. Basicamente, talento é uma qualidade decorrente da vontade de Deus e vocação, da vontade do indivíduo. Uma coisa é nata e a outra, inata. Talento é dádiva, a facilidade inexplicável com que alguém nasceu para fazer algo. É o que, por exemplo, diferencia os muito, muito bons, dos excepcionais. Já a vocação é o gosto genuíno por alguma atividade. O fazer pelo prazer de fazer, em qualquer nível.

A combinação das duas características é a mistura explosiva que constrói os grandes campeões. Por isso eles procuram manter as duas qualidades de mãos dadas , pelo menos nos pontos altos de sua carreira. Porque sabem que a vocação potencializa o talento. Até aí, chovi no molhado.

Mas se é fácil entender a diferença conceitual entre talento e vocação, é engraçado como na prática isso ainda se confunde. Muita gente - eu inclusive, confesso- ainda não sabe lidar bem com sua próprias vocações e talentos. Em parte isso é culpa da sociedade, que exalta o talento e despreza a vocação. A mídia adora os palcos, mas pouca atenção dá aos bastidores. Uma vez os basqueteiros Oscar e Hortência afirmaram que ficavam em quadra após o término do treino, praticando uma dose extra de 500, 600 arremessos de longa distância. Um caso evidente de vocação que lapidava ainda mais o talento natural. Só que falar e mostrar cenas do cotidiano batalhador desses deuses os humaniza, e não é isso que a mídia quer.

O que dá audiência é o palco, o título, o troféu. É mostrar o sucesso como se fosse instantâneo e mágico. Até porque os registros do tempo de anonimato são poucos - a imprensa não estava lá para fotografar e filmar. E mesmo quando relata os primórdios da carreira de alguém, a mídia o faz em tom fabulesco de história de cinderela. Ninguém assiste ao filme, cheio de sacrifícios e abnegações, que passa na cabeça do campeão quando ele levanta a tão desejada taça. Desmerecemos o esforço dos campeões, atribuindo os êxitos a Deus.

Não estou dizendo que qualquer varapau, se bem treinado, tenha potencial para ser um Oscar. Mas, como alguém já disse, todos nós temos algum talento. Ou até mais de um. E desmitificar o sucesso ajuda a arregaçar as mangas, pegar esse talento e fazer alguma coisa boa com ele.

A partir daí, convém dar mais ênfase a vocação do que ao talento. É preciso gostar mais dos dias de treino - todo dia - do que dos dias de palco - raros, muito raros. Isso me faz lembrar de uma historinha bobinha sobre três irmãs que procuravam bons partidos, Glória, Vitória e Constância. Nem todo mundo que foi atrás da Glória e da Vitória conseguiu ficar com elas. Mas quem preferiu a Constância, acabou ficando com as três.

sábado, 6 de junho de 2009

Puta publicitário ou publicitário puta?

O carro encosta na guia junto ao rapaz de preto bem apanhado. O vidro com insufilm de último grau desce meia janela e o senhor ao volante puxa papo com o jovem:

- Garoto, quanto é o programa?
- Como assim, programa?
- Você não é garoto de programa?
- Não, não, hehe, que idéia. Sou publicitário. Tô esperando um amigo que vem me pegar aqui na esquina.
- Ah, sei, tá com programa marcado.
- Não, senhor. Tô indo pra uma festa, Profissionais do Ano.
- Profissionais? Mas você acabou de dizer que não era um...
- Profissionais de pro-pa-gan-da.
- Mas eu te vi rodando uma bolsinha.
- Ah, isso aqui? Meu portfolio. Sabe como é, no meu trabalho a gente precisa de portfolio.
- Sei sim, já vi muito book em site de michê. Mas essa festa vai ser tão boa assim?
- Nem tanto, mas vou aproveitar a chance para me vender lá.
- Bom, se vai até lá só para se vender, entra logo no meu carro. Te pago em dobro.
- Senhor, já disse que não sou garoto de programa. E olha lá, meu amigo chegou. Tchau, prazer em conhecê-lo.
- Ok, eu tentei.

O carro parte e o carro do amigo encosta no mesmo lugar. O rapaz entra no banco do passageiro:

- E aí, rapá, tava falando com quem?
- Um dono de agência que eu conheço me ofereceu uma carona, mas eu disse que você ia passar pra me pegar.
- Pô, por que não foi com ele? De repente, podia rolar uma proposta.
- E rolou, ele me ofereceu o dobro.
- O dobro.
- É, mas eu recusei.
- Recusou?
- Claro, o cara queria me explorar. Não sou puta...

sexta-feira, 5 de junho de 2009

O Havaí, seja lá longe

Eu nunca fui ao Havaí - ou Hawaii se preferirem. O único Havaí que eu conheço está localizado na minha memória de infância, aquele enquadrado pela tela da tv no filme do Elvis. Agora, consultando o mapa pelo Google, fiquei surpreso ao perceber duas coisas. O quanto o arquipélago fica distante dos EUA - a pelo menos 3100 km de distância -, apesar de ser um de seus estados. E que o Havaí está mais alinhado com o México do que com a terra de Tio Sam, quando eu imaginava que ficava mais para o norte. Dá para entender minha ignorância. Desde que comecei a viajar para o exterior, nunca me interessei em ir para lá. Eu, como cobiçador de viagens, costumo me armazenar de informações sobre todos os lugares que pretendo ir. Viajo na imaginação antes de viajar de fato. Sobre o Hawaí nunca li nada em revista ou guias de turismo. Para mim, o Havaí é a Itanhaém dos americanos. Imagino que o governo mantenha aquele parque de diversões decadente armado a beira-mar como uma lembrança de seus tempos áureos. Posso estar redondamente enganado e nesse caso, os que conhecem e gostam de , por favor, perdoem minha ignorância. Mas se o Havaí teve seu apogeu, o que melhor caracterizou isso? O surf? Visitas de astros holywoodianos? O ataque a Pearl Harbor? Sei lá, nem quero saber. O Havaí talvez esteja na tricentésima, quadragésima quinta posição de minhas prioridades turísticas. Desde que conheci Nova Iorque e países da Europa, reafirmei minha vocação urbana, e então nunca mais me interessei por destinos paradisíacos do exterior - deixo para explorar isso em terra brasilis. Aliás, o Havaí nem deve mais ser paradisíaco. Nesse quesito, a gente só ouve falar bem de Maldivas, Tahiti, Bora Bora, Fiji. Não é que eu despreze o Havaí. Para mim, ele não fede nem cheira. É só um nome exótico para uma possessão americana. E como soube depois, a terra natal de Obama.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

O pequeno grande poder

Desde que Deus se criou - Ele pode, Ele é Deus - automaticamente inventou o poder. Depois, ao criar os animais, Deus deve ter imaginado que fosse útil eleger um líder para cada grupo, para conduzí-lo e assim garantir a sobrevivência dos seus. Deu certo com formigas, leões e elefantes. Deu um problemaço com os homens. Porque quando contaram que era o filho favorito do Cara lá de cima, feito à sua imagem e semelhança, o homem, claro, não se conteve. Descalçou as sandálias da humildade. Achou que era Deus também. Compreensível que esse sentimento atinja presidentes da república, astros de Hollywood e o Donald Trump. Mas o poder, praga que é, se alastrou pirâmide social abaixo. E hoje você encontra o poder bem ou mal exercido em qualquer grupo mínimo de seres humanos. Bastam duas pessoas. É pai com filho, dona de casa com empregada, professor com aluno, aluno com professor. Mas a manifestação do pequeno poder fica evidente em grupos um pouquinho maiores. Por exemplo, os condomínios residenciais. A hierarquia é composta pelo síndico, que está acima do subsíndico, que cobra o zelador, que dá esporro nos porteiros, que menosprezam os faxineiros. As leis que regem esse mundinho são definidas na reunião de condomínio, uma espécie de sessão da câmera dos deputados, também quase sempre vazias. Ali são decididas questões de alta relevância, como a briga do chihuahua do 23 com o pinscher do 144 ou a instalação do pisca-pisca de natal na fachada. Mas uma vez que a reunião termina, a execução das medidas ficam com o síndico. Ou melhor, a bomba está na mão do zelador. Mas vai sobrar na reta dos porteiros. Que por sua vez, vão descontar nos faxineiros. Daí é natural que as classes menos favorecidas se revoltem. Se você, como eu, costuma trocar idéia com porteiro de vez em quando, sabe que dentro do condomínio existem rusgas como em qualquer outra organização. Porteiro critica outro porteiro, ambos não falam bem do zelador, que abomina o síndico, que muitas vezes é visto como oportunista pelo resto dos moradores, já que está isento da taxa de condomínio. Enfim, por menor que seja o grupo onde o poder se manifesta, haverá gente lutando por e se incomodando com ele. E se o poder já é um bichinho que ataca os homens num condomínio de 10, 15, 20 andares, imagine no topo do mundo.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Cada um tem o ingresso que merece

De um lado gente já formada e até quem nunca estudou falsificando carteirinhas de estudante aos montes para usufruir de um privilégio que não é mais ou nunca foi seu. De outro, promotores de shows, donos de salas de cinema e times de futebol inflacionando o preço dos ingressos para compensar a malandragem. No meio desse tiroteiro, pobre do estudante e do idoso, que não têm nada a ver com a briga, mas acabam pagando caro por isso, digo, pela meia entrada. Inconformado com mais uma lei que não favorece quem deveria, proponho um novo sistema de cobrança de ingressos, mais justo para todos.

Ingresso para show de música deve ser:
-100% mais caro para gigantes de 2 metros que ficarem na frente
- 200% mais caro para quem não conhece o artista e vai ao show só pela balada
- 300% mais caro para quem tenta chegar na frente da platéia depois que o show já começou.
- 500% mais caro para quem gritar "Toca Raul!"

Ingresso de jogo de futebol deve ser:
- 90% mais baratos para mulheres gostosas
- 80% mais baratos para torcedores do Íbis
- 200% mais caro para quem não sabe o que é impedimento

Bilhete de cinema deve ser:
- 50% mais baratos para insones que não roncam
- 90% mais barato para todo mundo se for de filme sério com o Jim Carrey
- 200% mais caro para casais que confundem cinema com motel
- 300% mais caro para quem conversa durante o filme
- 400% mais caro para quem deixar o celular tocar.

Bem, agora só falta implantar a logística para classificar o espectador e cobrar de cada um o preço justo. Que tal confeccionar carteirinhas só para facilitar?

Dominação silenciosa

Quando lançou “Admirável mundo novo”, se não me engano na década de 30, Aldous Huxley profetizou o bebê de proveta, o prozac e outras modernidades que já viraram lugar comum. Hoje, depois de tantos livros e filmes preverem a dominação do mundo pelas máquinas, ninguém mais duvida de que isso vai acontecer a qualquer momento. Desde que o campeão de xadrez Gary Kasparov tomou pau do Deep Blue, a confiança na supremacia da raça humana nunca mais foi a mesma – esse fato foi tão traumático quanto a perda da nossa ingenuidade naquele caso onde um parente do flipper matou um mergulhador. Pois é, desde então os robôs se deram conta de que é só uma questão de tempo para assumirem esse planeta falido e descontarem nos humanos anos e anos de jornadas prolongadas sem férias nas fábricas da Fiat e Volkswagen. Essa certeza de um dia assumir a Casa Branca e colocar o Obama de mordomo não vem só do avanço tecnológico que vai deixar eu e você no chinelo. É que neguinho também resolveu descambar e facilitar para os cibernéticos. Estou me referindo a massa de ignorantes que está crescendo justamente pela má influência dos meios eletrônicos, que devem ser parceiros ideológicos dos robôs. É muita coisa ruim na tv, muita porcaria na internet e pouco conteúdo que realmente vale a pena. Não estou aqui fazendo apologia dos livros ou do canal
Futura, apenas acho que nossa referência tem sido Big Brother demais e George Orwell de menos. Enquanto isso, na surdina, os robôs devem estar se infiltrando nas escolas, bibliotecas, cineclubes, fazendo de tudo para acelerar o processo de tomada de poder. Um dos seus colegas pode ser um robô e você nem desconfia - provavelmente aquele que você acha que está subindo porque deve estar comendo a vice-presidente. Aliás, um desses robôs dissimulados, um tal de Schwarzenegger, foi tão engenhoso na tarefa de se passar por humano que até hoje ninguém desconfiou disso. Chegou até a convencer como ator interpretando um robô num filme, decerto porque ninguém sabia que interpretava a si mesmo. E assim, ganhando a confiança e a simpatia das pessoas, acabou eleito governador da Califórnia, provando que sim, os robôs ainda vão dominar o mundo.

Pai nosso ecológico

Pai nosso que nos espia pelo buraco da camada de ozônio
Santificada seja a estratosfera
Venha a nós o oxigênio
Seja a feita a reciclagem
Assim no lixo como no ar
A inversão térmica de cada dia nos dai hoje
Perdoai os vazamentos de óleo
Assim como nós perdoamos as flatulências da vaca
E não deixei cair a chuva ácida
Mas livrai-nos do efeito estufa
Amém

terça-feira, 2 de junho de 2009

Renascido

Chamar de vida era até elogio para aquela sucessão de dias rigorosamente iguais por que Adolfo Rodrigues passava sem deixar marcas. Casado, três filhos, há vinte e cinco anos supervisor de vendas da mesma empresa e frequentando o mesmo círculo de amizades desde a infância. Seu casamento com Miriam sempre foi de aparências, arranjado pelos pais de ambos com a esperança de ver acender no futuro o fogo entre as duas moscas mortas. Mas que nada. Se dormiram juntos três vezes, foi muito. E não fizeram o enorme esforço em vão: desses acidentes de percurso nasceram os três filhos. Três varões cuja natureza “devagar, quase parando” não negava sua herança genética. Se Adolfo era frio com a mulher, com os filhos era quase um estranho. Deles, não esperava nada além de tomar-lhe a mão para a benção e compartilhar a oração antes das refeições. E claro, enxergava seus rebentos como seus sucessores naturais na Fixa Pregadores de Roupa, a empresa mais antiga da cidade. Onde seu pai, o pai do pai, o pai do pai do pai, quem sabe até Adão teria trabalhado. Pois foi no dia em que o filho mais velho estreou na Fixa como estagiário que Adolfo teve a idéia de, no caminho de volta para casa, entrar numa livraria. Um livro da prateleira de ficção logo chamou sua atenção. Começou a folhear “O Condenado” por curiosidade e logo ficou entretido com a curiosa história. A lenda de um cavaleiro medieval que havia sido condenado por uma bruxa a viver dias sempre iguais através de várias encarnações até que…Adolfo começou a tremer. Seus olhos mal podiam acreditar no texto que lia: “…até que, em sua última encarnação, o ex-cavaleiro entra em uma livraria, acha um livro que conta a história de todas as suas vidas e se liberta da maldição da bruxa”. Na hora Adolfo tem um treco e é levado para um hospital, onde fica em estado de coma. Mesmo desenganada pelos médicos, sua família continua a visitá-lo diariamente na esperança de ter Adolfo de volta. Adolfo seguiria imutável, mas não sua mulher e filhos. Uma verdadeira reviravolta acontecera na família. A mãe arrumou um namorado 20 anos mais novo. Um filho se tornou piloto, o outro montou uma banda e o terceiro se tornou cineasta. Todos os dias, além de flores, a família trazia novidades para Adolfo, que mesmo de olhar perdido parecia sorrir com os relatos. De fato, depois do feitiço quebrado, seus dias nunca mais foram os mesmos.